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Estrada de Ferro de Cantagalo: impressões de uma viagem

A cultura do café destinada à exportação no vale do Paraíba, durante o Império, estimulou o investimento em ferrovias para transportar este produto das unidades de produção até os portos. Uma destas ferrovias foi a Estrada de Ferro de Cantagalo. O naturalista suíço Johann Tschudi (1818-1889) que esteve na região serrana fluminense na década de 1860 escreveu que do município de Cantagalo desciam a serra diariamente de 500 a 600 sacas de café destinadas ao porto do Rio de Janeiro. De início, a via de descida da serra da Boa Vista era extremamente precária, praticamente uma picada feita possivelmente por indígenas Puri. Além de íngreme e mal traçada, era muito estreita e nas rampas de maior declive os precipícios punham em risco as cargas e as mulas. Na década de 1830 uma outra via foi traçada e aproveitada no futuro pela ferrovia.

Vista da baía da Guanabara antes dos barcos a vapor. Henry Chamberlain. Acervo BN
Vista da baía da Guanabara antes dos barcos a vapor. Henry Chamberlain. Acervo BN

Após descerem a serra, as tropas de mulas atravessavam o vale do Macacu até Porto das Caixas onde as sacas de café seguiam em barcos até o Rio de Janeiro. Na estação das chuvas a serra ficava escorregadia e as várzeas um atoleiro, retendo até a morte os animais que não conseguiam sair da lama. Conforme relato do naturalista alemão Hermann Burmeister (1807-1892), “Nos últimos oito dias algumas mulas haviam ficado atoladas na lama, perecendo ali mesmo, o que era possível verificar-se pelos cadáveres que jaziam na estrada. Tive ocasião de ver um animal desses, vivo ainda, coberto com uns ramos, tentando em vão esforço levantar a cabeça de quando em vez”. Já Tschudi escreveu, “…Durante o transporte por via terrestre, o fazendeiro ainda corre o risco de algum acidente, de chuvas inesperadas que desvalorizam seu produto. Mesmo os melhores tropeiros não conseguem, às vezes, proteger sua carga da umidade. Caminhos transitáveis e boas estradas de ferro são, pois, elementos indispensáveis e vitais para as zonas cafeeiras…”

A primeira via da serra da Boa Vista. Johann Jacob Steinmann. Acervo BN.png
A primeira via da serra da Boa Vista. Johann Jacob Steinmann. Acervo BN.png

A concessão da Estrada de Ferro de Cantagalo coube inicialmente ao Visconde de Barbacena, mas foi transferida ao fazendeiro capitalista Antônio Clemente Pinto, primeiro Barão de Nova Friburgo e sócios. Era a quarta ferrovia construída no Brasil e financiada pelo governo. O Barão de Nova Friburgo possuía inúmeras fazendas de café em Cantagalo e daí o seu interesse na linha férrea para despachar as sacas de café em estações próximas às suas propriedades rurais até Porto das Caixas. Para tanto, a construção da Estrada de Ferro de Cantagalo foi dividida em 3 seções. A primeira de Porto das Caixas até o arraial de Cachoeiras de Macacu, na raiz da serra; a segunda de Cachoeiras até Nova Friburgo; e a terceira de Nova Friburgo até Macuco. A primeira seção utilizou a mesma rota que faziam os tropeiros, construindo-se pontes e pontilhões sobre os rios, abrindo um túnel e fazendo aterros. A inauguração da seção de Porto da Caixas até Cachoeiras de Macacu ocorreu em 22 de abril de 1860 com a presença do Imperador D. Pedro II. Próximo ao cais foi montado um grandioso arco do triunfo e o Barão de Nova Friburgo ofereceu um suntuoso jantar para as autoridades.

O barão de Nova Friburgo segura a planta da Estrada de Ferro de Cantagalo. Acervo Museu da República
O barão de Nova Friburgo segura a planta da Estrada de Ferro de Cantagalo. Acervo Museu da República

Como o Barão de Nova Friburgo falecera, a segunda seção foi construída pelo seu filho Bernardo Clemente Pinto Sobrinho. Em 18 de dezembro de 1873 a linha férrea chegou a Nova Friburgo, contando também na inauguração com a presença de D. Pedro II. Os engenheiros responsáveis foram Júlio Von Borel du Verney e Theodoro de Oliveira. Houve muita dificuldade no trecho da subida da serra em razão de seu declive. Com 13 km de extensão esta serra apresentava uma das mais fortes rampas ferroviárias existentes no mundo e por isto foi necessário utilizar o sistema Fell, que leva o nome de seu inventor, o inglês John Barraclough Fell. Na subida da serra, a locomotiva era substituída por uma que possuía um motor auxiliar que acionava as rodas horizontais presas a um terceiro trilho mais alto. Posteriormente este sistema foi substituído por cremalheiras, mais simples e de manutenção menos onerosa.

Estação de Nova Friburgo inaugurada por D. Pedro II em 1873. Acervo Fundação D. João VI
Estação de Nova Friburgo inaugurada por D. Pedro II em 1873. Acervo Fundação D. João VI

A última seção foi feita de forma gradativa. O tráfego ferroviário alcançou Bom Jardim, Monnerat, Cordeiro, centro de Cantagalo, Fazenda do Gavião, Euclidelândia, Boa Sorte, Laranjais, Engenho Central, Batatal, Itaocara, Macuco e em 1890 chegou até Portela. Como a empresa apresentasse dificuldade financeira, em 1877 o governo provincial encampou a Estrada de Ferro de Cantagalo e conforme Tschudi, “…não produziu resultados satisfatórios até agora, embora atravesse regiões de tão grande importância agrícola”. No ano de 1889, a empresa inglesa The Leopoldina Railway passou a ser concessionária deste tráfego ferroviário. Quando a linha férrea alcançou estes municípios da serra fluminense, que pertenceram a Cantagalo, suas lavouras de café apresentavam menor produtividade do que outrora, em virtude do esgotamento da terra. Conforme Clélio Erthal, em 1877 já circulavam comentários na Corte do exaurimento das terras de Cantagalo.

 Maquinista na locomotiva de Nova Friburgo, 1940. Acervo Fundação D. João VI
Maquinista na locomotiva de Nova Friburgo, 1940. Acervo Fundação D. João VI

Conforme ata da Câmara de Nova Friburgo de 14 de janeiro de 1870, “…a estrada de ferro facilitará aos ricos que quiserem se distrair e aos doentes que se quiserem curar ou convalescer sob este clima doce, suave e ameno, cuja reputação é tradicional, um rápido e cômodo transporte…”. O município que mais se beneficiou da linha férrea foi Nova Friburgo. A ferrovia passou a servir não somente ao transporte de mercadorias de suas lavouras, mas igualmente ao setor de serviço e comércio. Considerada uma estância de cura da tuberculose, a cidade serrana de Nova Friburgo era recomendada pelos médicos pois o seu clima de altitude auxiliava no tratamento desta doença. A cidade recebia inúmeros tísicos que se hospedavam no Instituto Sanitário Hidroterápico, em hotéis ou alugavam residências. Cariocas que fugiam das epidemias de febre amarela, que todo verão ocorriam no Rio de Janeiro, igualmente buscavam o clima salubre de Nova Friburgo nesta quadra do ano. A partir da linha férrea, uma viagem do Rio de Janeiro a Nova Friburgo que antes durava 4 dias, passou a ser feita em 4 horas, dizia-se na época. Na prática durava em torno de 6 horas.

Fundo da primeira estação de trem de Nova Friburgo. Acervo RFFSA
Fundo da primeira estação de trem de Nova Friburgo. Acervo RFFSA

Convido agora o leitor a fazer o percurso de uma viagem desde o Rio de Janeiro até Nova Friburgo. Na estação marítima no largo da Prainha (atual praça Mauá), o passageiro com destino a cidade serrana comprava o bilhete de trem de 1° ou 2° classe. Diariamente, bem cedo pela manhã, saía uma barca com horário em correspondência com o trem expresso que partia da estação de Sant’Anna do Maruí, em Niterói. A travessia da baía da Guanabara, que durava aproximadamente 45 minutos era deslumbrante. Na embarcação sentia-se o ar impregnado de perfumada maresia que deixava para trás os cabeços dos montes e as torres das igrejas. No trajeto avistava-se o arsenal da Marinha, navios de guerra e mercantes bem como vapores atracados aos trapiches. Passava-se pela ilha das Cobras, ilha das Enxadas (Escola Naval) e pela grandiosa ilha Fiscal com o belo edifício neoclássico. Aproximando-se de Niterói se avistava os contornos da soberbíssima Serra dos Órgãos passando pelas ilhas Mocanguê grande e pequeno, Do Viana, Conceição, entre outras. Chegando a estação de Sant’Anna do Maruí o embarque dos passageiros levava algum tempo em razão do despacho das bagagens e do correio nos vagões. A demora favorecia a venda dos ambulantes segurando bandejas com pães, doces e frutas bem como  dos vendedores de jornais e bilhetes de loteria apregoados com grande alarido.

A serra apresentava uma das mais fortes rampas ferroviárias do mundo. Acervo RFFSA.jpg
A serra apresentava uma das mais fortes rampas ferroviárias do mundo. Acervo RFFSA.jpg

Na partida, a locomotiva soltava um estridente apito lançando imensos rolos de fumo pelo ar, que lhe valeu o apelido de maria fumaça. Passava-se pelas estações de Porto da Madama, São Gonçalo, Alcântara, Guaxindiba e Itambi, sem fazer nenhuma parada. Chegando à estação de Porto das Caixas fazia-se uma parada e ambulantes apregoavam a venda de cambucá, laranja, tangerina, lima, limão doce, jabuticaba, fruta do conde, abacaxi, melancia, sapoti, abacate e roletes de cana. No botequim da estação servia-se café acompanhado de bolo de arroz ou de milho. Partindo de Porto das Caixas o comboio atravessava um pequeno túnel passando por pontes, pontilhões e pelas estações de Sambaetiba e Papucaia, mas o expresso não parava, havendo somente uma curta parada na estação de Santana de Japuíba. A próxima estação era a de Cachoeiras de Macacu com uma parada onde se encontrava no botequim café, pão de ló, beijus e bananas. O expresso seguia até a estação Boca do Mato onde se fazia a mudança da locomotiva por uma apropriada à subida da serra, que já me referi anteriormente. Desta estação é que realmente a locomotiva, aos arrancos, começava a subir a longa e majestosa serra rumo a Nova Friburgo.

Estação de trem de Friburgo que substituiu a do século 19, inaugurada em 1935. Acervo F. D. João VI
Estação de trem de Friburgo que substituiu a do século 19, inaugurada em 1935. Acervo F. D. João VI

A temperatura se alterava muito sentindo os passageiros o ar bem mais fresco. Na subida, quando a máquina perdia força, o foguista colocava mais carvão na fornalha e o maquinista “fustigava o cavalo de ferro que avançava e contorcia-se soltando gemidos estridentes ao cavalgar”. Os vagões balançavam muito em certos pontos e alguns diziam “qual carroça vazia”, o que poderia provocar um certo enjoo. A locomotiva serpenteava a serra animada pelo vapor de suas máquinas possantes e sob uma chuva de carvão em fogo a cair sobre o comboio. As pessoas geralmente usavam guarda-pó e alguns ainda portavam na cabeça um lenço com nó nas quatro pontas para se protegerem de fagulhas de carvão acesas que entravam pelas janelas abertas dos vagões. Sim, corria-se o risco de queimar a roupa ou entrar uma fagulha no olho, como já ocorreu. A conversação intensa e palradora dos passageiros somente cessava para contemplarem absortos a paisagem esplêndida, feérica e grandiosa da Mata Atlântica.

A subida da serra exigia trilhos especiais. Acervo RFFSA.
A subida da serra exigia trilhos especiais. Acervo RFFSA.

Desde o alto da serra que tudo é cantante, os pássaros, as cachoeiras do rio Macacu que se atiram pelo declive e o ruído dos sinos das tropas de mulas à margem da estrada transportando os produtos das roças dos lavradores locais. Devido a densa neblina tinha-se a impressão de que a locomotiva seguia para o céu, na confusa expressão de suas névoas. Cessada as brumas, uma belíssima paisagem se descortinava na fresca e suave aragem da mata. Passava-se pelo Posto do Penna e a seguir alcançava-se o Posto do Registro com uma pequena parada para a locomotiva ser abastecida de água. Os passageiros aproveitavam para se refrescarem bebendo a água fresca que jorrava de uma fonte artificial. A 1.009 metros avista-se a baía da Guanabara, qual um lago sereno ao fundo da mata. Na estação de Theodoro de Oliveira uma parada para mudar novamente a locomotiva adaptada a descida, do sistema fairlie. O comboio descia o vale acompanhado pelo rio Santo Antônio e faltando pouco para chegar à estação no centro da cidade o maquinista anunciava a chegada apitando a locomotiva.

No Posto do Registro parada para abastecer a locomotiva e beber água da fonte. Acervo RFFSA.
No Posto do Registro parada para abastecer a locomotiva e beber água da fonte. Acervo RFFSA.

A cada chegada do trem as pessoas nas imediações se dirigiam pressurosas até a estação observar quem chegava na cidade. Ninguém resistia a esta curiosidade. Meninos circulavam em grande número pela estação aguardando a chegada dos trens.  Empurrando uns aos outros na disputa desenfreada de levar as bagagens dos recém-chegados, viviam aos sopapos disputando o privilégio do serviço. Alguns mais audaciosos subiam nos vagões ainda em movimento, um pouco antes da estação, para garantir o compromisso do passageiro, correndo o risco de acidente. A disputa entre eles era tão acirrada que os passageiros ficavam atordoados e amedrontados, permanecendo nos vagões até que o sarilho passasse. O guarda da estação costumava dispersar os meninos com vara de marmelo. Os mais taludos também rivalizavam com as crianças para carregarem as bagagens, o que tornava a chegada de cada trem uma verdadeira confusão.

O ramal de Sumidouro ligava Nova Friburgo a Minhas Gerais. Acervo RFFSA.
O ramal de Sumidouro ligava Nova Friburgo a Minhas Gerais. Acervo RFFSA.

Quando a Leopoldina Railway obteve a concessão do tráfego ferroviário, o ramal de Sumidouro ligava Nova Friburgo ao Estado de Minhas Gerais. Partindo do centro de Nova Friburgo passava-se pelas estações de Conselheiro Paulino, Dona Mariana, Murinelly, Barão de Aquino, centro de Sumidouro, Bela Joana, Barra de São Francisco, Bacelar, Paquequer, Melo Barreto, São José e Porto Novo do Cunha, em Além Paraíba. Isto permitiu que os friburguenses participassem da Revolução de 30 enviando tropas e lutando na divisa com Minas Gerais. Na região serrana fluminense todos os subtrechos foram sendo erradicados em 1964. O subtrecho entre Cachoeiras de Macacu e Nova Friburgo foi extinto em 15 de julho deste ano. A ferrovia deixa saudades.

A chegada dos revolucionários friburguenses de Minas Gerais. Acervo F. D. João VI
A chegada dos revolucionários friburguenses de Minas Gerais. Acervo F. D. João VI
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