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Vozes da Escravidão: Fazenda Rancharia do Norte em Monnerat

No Brasil, os escravizados eram proibidos de ser alfabetizados por seus senhores. Por isto raramente, à exceção de processos criminais, ainda assim por interpostas pessoas, achamos registros de suas falas. Localizei um anúncio publicado em O Friburguense em 17 de abril de 1881 em que o capitão Luciano José Coelho de Magalhães, lavrador de Cantagalo, ofereceu uma quantia a quem capturar, ou der notícias certas de seu escravo José, pardo, idade entre 28 e 33 anos, cozinheiro, falquejador e serrador. José era muito falante e cortês, destaca o anúncio. Tinha a voz fina e quando cumprimentava as pessoas dizia sempre a seguinte frase: “Deus lhe dê bons dias” ou “Deus lhe dê boas tardes”.

Em um passeio em maio de 1922 pelos arredores de Nova Friburgo, os alunos internos da divisão dos menores do Colégio Anchieta têm contato com um ex-escravizado de 82 anos. Aos meninos e padres que os acompanhavam, disse se chamar Julião José Maria da Assunção Lisboa, veterano da guerra do Paraguai e que tomara parte no conflito de princípio ao fim. Continuando sua prosa falou ter sido escravo de um senhor muito ruim, que “de vez em quando lhe sacudia o pó das costas exageradamente”, ou seja, lhe aplicava açoites. Nascera “lá pra riba da fazenda véia” e que era filho de Josué dos Bambus e de Procópia Anastácia Felisberta das Fulô. (Aurora Colegial, 14 de maio de 1922, coluna “Echos da Terceira Divisão”)

Alunos da divisao dos menores em passeio pelos arredores da cidade. Acervo Colegio Anchieta
Alunos da divisão dos menores em passeio pelos arredores da cidade. Acervo Colégio Anchieta

No período em que o Colégio Anchieta passa a formar apostólicos, os alunos costumavam passar as férias de fim de ano na fazenda Rancharia do Norte, no distrito de Monnerat, município de Duas Barras. Era de propriedade de Dr. Raymundo Bandeira Vaughan, ex-aluno do internato e grande benfeitor da Escola Apostólica. Na sua fazenda, os apostólicos se divertiam com banhos de piscina, pescaria no açude, cavalgada e com “Tio Pedro, um preto do tempo da escravidão”. Pela manhã, com a enxada ao ombro, parte para a sua rocinha perto da casa de vivenda. Magro, o cabelo todo enroscadinho e branquejado pela idade, a testa um pouco enrugada, as faces retraídas e alguns fios de barba espalhados debaixo do queixo. Braços compridos, mãos secas e calosas, dedos esguios e compridos.

Tio Pedro posa para foto na fazenda Rancharia do Norte. Acervo Colegio Anchieta 1
Tio Pedro posa para foto na fazenda Rancharia do Norte. Acervo Colégio Anchieta

Anda sempre descalço e só aos domingos veste seu terno branco ou então a blusa cáqui, ostentando garboso um grande lenço vermelho a pender-lhe dos ombros. Tio Pedro é ótimo, sempre alegre e está sempre disposto a tudo. Trabalha desde criança na fazenda Rancharia do Norte onde cuida do pomar, cultiva os pés de frutas, como ele diz “P’ra a patrôa fazer cerveza, como voceis faiz”. Trata também da criação, principalmente das aves, de que tem um verdadeiro ciúme. É muito cristão e aproveita sempre as férias dos apostólicos na fazenda para se instruir. Gosta muito de balas, que lhe choviam quando tocava flauta.

Fazenda Rancharia do Norte onde os apostolicos passam as ferias. Acervo Colegio Anchieta
Fazenda Rancharia do Norte onde os apostólicos passam as férias. Acervo Colégio Anchieta

Preparavam-se um dia os apostólicos para um passeio, eis que chega tio Pedro de enxada ao ombro:

Êta, tio Pedro, vae capinar?

Vô sim meus anzinho.

Tio Pedro, quer me arranjar uma cabaça?

Ah! nôn possu, nôn, vô capiná minha roça, si nôn os bois come tudo.

Mas em qualquer outra hora…

Ah! nôn possu nôn.

Olá, tio Pedro, bom dia!

Bom dia, Sô Vigário!

Vai capinar sua rocinha?

Vô sim Sinhô.

Então, não quer dar um passeio conosco?

Hoze nôn, pricisa trabaiá, sinôn nôn tem direto de comê — E assim falando, foi-se para a sua roça e os apostólicos para o seu passeio. Na volta o encontraram não longe da estrada, capinando o seu milho, muito alegre e satisfeito; então um dos apostólicos com um grito o desperta do trabalho:

Oh! tio Pedro!

— Ein!… tio Pedro ta trabaiando.

— Chove hoje tio Pedro?

Tio Pedro tira o boné surrado, coça a cabeça, e depois de ter olhado o céu e consultado as nuvens, diz com convicção:

Ah! nôn çove nôn.

Os apostolicos em uma prosa com o querido Tio Pedro. Acervo Colegio Anchieta
Os apostólicos em uma prosa com o querido Tio Pedro. Acervo Colégio Anchieta

Em outra ocasião, os apóstolos encontraram tio Pedro em traje de gala vestindo calça branca, blusa cáqui e lenço vermelho ao pescoço. Era Domingo e tio Pedro tinha consigo um galo. As rinhas de galo costumavam ser nas praças das cidades.

— Mas… tio Pedro, o Senhor não tem medo de que esses galos de briga se matem?

— St! — Exclamou tio Pedro fazendo estalar a língua um número repetido de vezes

 — St! si morre argum eu como ele.

— Eh! tio Pedro, o galo está com um dos olhos furado!

— Ele foi bigá com um galo mestiço de índio zá formado, mais forte do que ele; oia lá aquele galo”, e assim falando apontava um soberbo galo mestiço de índio, de penas pretas, papo e pescoço pelados que nesse momento saía do seu esconderijo — foi bigá  com aquele galo danado e saiu com um oio só.

— Então, tio Pedro, como vai o galo garnizé?

— Ah! Ah! Ah!… o galizé! ele foi conta papo com aquele índio, o índio deu uma cacetada nele, que ficou çonzeado no ção, eu peguei ele meti dentro do gainhero e assim memo ficó çonzeado… Hoze tá bom.

— O Senhor gosta de balas?

Gosto sim, cando voceis mi dão, eu çupa di noiti.

Toma lá tio Pedro! Tio Pedro abriu o quanto pôde o bolso ao mesmo tempo que agradecia.

Muito bigado, voceis são uns anzinho, Deus le pague… Voceis tem um coraçon de oro, … muito bigado…

Tio Pedro, o Senhor gosta daquele Padre? E dizendo isto os apostólicos apontavam para o Padre João, que vinha se aproximando do grupo.

Çi! aquele vigário mi faiz só sermão… ele zá deu cabo da minha pinga, graça ele nôn bebo mais. E vendo o Padre que se aproximava sempre mais: — Eh! lá vem ele vô mi embora, sinôn ele faiz sermão”. Ih! zá stá çegando!

Tio Pedro! Tio Pedr…o!

Eu vô comê. — Gritou tio Pedro disfarçando, sem mesmo olhar para trás. — Agora nôn tem tempo… Bença Sô Vigário.

Agora não é hora de comer. Disse o Padre. — Tio Pedro! — Tio Pedro afinal vencido teve que voltar atrás.

Sinhô.

Você não gosta de mim?

Hêe… Hêe… Gosto sim.  E desatou a rir maliciosamente.

Mas então, porque estava fugindo?

O Sinhô só faiz semon pra zente, e nunca mi deu uma bala.

Mas eu não te dei aqueles quadrinhos de lembrança?

Deu sim, muito bigado, mas os menino sôn uns anzinho, sempre mi dão bala, eh, eh, eh… E desatou de novo a rir, deu uns pulinhos característicos e foi-se rindo gostosamente.

Tio Pedro! Tio Pedro!

Eu vae mi embora, — respondeu tio Pedro sem olhar para trás e já meio desconfiado. – Agora nôn possu… Bença Sô Vigário.

Tio Pedro, você quer tirar fotografia?… Continuou o Padre insistentemente.

Eu! Si eu qué tirá fosfogatia, aquela machina que pinta a zente?

É sim.

Intôn qué, qué, sim Sô Vigario.

Apronte-se logo, eu vou buscar a máquina.

Sim Sinhô. Eta, tio Pedro,… a bença…

Foi todo contente para o seu quarto, pôs sua velha bota com as polainas largas e compridas até os joelhos, arranjou bem as calças, alisou o quanto pôde a camisa, pôs seu jacá às costas, tomou o boné mais novo e tratou logo de se apresentar ao padre. Numa ocasião em que tio Pedro visitou o Colégio Anchieta com o administrador da fazenda Rancharia, conheceu o educandário onde estudavam os apostólicos, os seus anjinhos, e comentou: Ora, ora vesa só! É um mundo! Com uma porção de zanelas, tudo encarrerada… (O Apóstolo, abril de 1936, n°17)

Os apostolicos no Colegio Anchieta em partida para um passeio de ferias. Acervo Colegio Anchieta
Os apostólicos no Colégio Anchieta em partida para um passeio de férias. Acervo Colégio Anchieta
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