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Os mercenários de Dom Pedro I no Exército Brasileiro

Na última semana, um desentendimento entre o ditador da Rússia Vladimir Putin e mercenários do grupo Wagner ganhou imensa proporção depois que o líder dos mercenários, Yevgeny Prigojin, ameaçou invadir Moscou. Trata-se de um grupo paramilitar formado por ex-soldados, prisioneiros cooptados nas prisões, civis russos e estrangeiros. Prigojin a serviço do governo russo, já enviou seus mercenários para lutar em conflitos na Síria e em alguns países africanos, muito bem pago pelo Kremlin que tem interesse nestas guerras civis. Na guerra com a Ucrânia, Putin igualmente utilizou estes mercenários no conflito. Na história do Brasil, no Primeiro Reinado, D. Pedro I igualmente fez uso de mercenários estrangeiros para garantir a soberania do país.

Na Independência do Brasil de Portugal o temor da recolonização dominava o espírito da época. Portugal somente viria reconhecer a independência de sua outrora colônia em 1825. Alarmantes boatos de que se estava mobilizando uma expedição punitiva para neutralizar as veleidades separatistas dos brasileiros, inquietavam o Imperador D. Pedro I. Províncias do Nordeste apoiavam a Metrópole e iniciavam um movimento separatista. Havia ainda a iminência de um conflito armado contra as Províncias Unidas do Rio da Prata(Argentina) pela conquista do Uruguai. A solução para a Questão Cisplatina era militar e a guerra acabou ocorrendo entre 1825 e 1828. Com todas essas tensões externas e internas, D. Pedro I voltou sua atenção para as Forças Armadas. Verificou que as tropas nacionais não passavam de milícias mal armadas e indisciplinadas e os oficiais, todos portugueses, não gozavam de sua confiança.

A história do recrutamento no Brasil, o imposto de sangue, era na base do “pau e da corda”. Quando o governo necessitava recrutar, aguardava as festas religiosas e pegava “na rede” uma enorme quantidade de rapazes que inocentemente se divertiam nos folguedos. Muitas vezes promoviam retretas animadas nas praças para atrair o povo e tão logo a rapaziada chegava, uma patrulha os prendia e despachava-os para os quartéis do Rio de Janeiro. Vagabundos e delinquentes eram o alvo predileto das autoridades encarregadas do recrutamento militar. Os recrutas eram conduzidos acorrentados em grupo como escravos no libambo até o Rio de Janeiro, sem mesmo receber qualquer alimentação. Os mais rebeldes eram conduzidos com gargalheiras, uma coleira de ferro com uma pua, a mesma utilizada em escravos fujões. A escolta vez por outra baixava o cacete nos mais desaforados.

O Exército e a Armada (Marinha) eram temidos devido aos castigos corporais onde o chicote corria solto a qualquer desvio de conduta, aplicado diante da tropa formada. Não havia qualquer tipo de instrução, exercícios militares ou manobras. A cachaça era consumida o dia inteiro nos quartéis. Um mercenário alemão descreveu um batalhão composto por brasileiros como verdadeiros mondrongos: “O aspecto de um destes batalhões brasileiros de linha, com seus grotescos fardamentos de gala[…] Aqui perfila-se um negro, com a sua chata e inexpressiva fisionomia africana entre um feio mulato amarelo e um índio acobreado[…] De quando em quando observa-se na fileira um brasileiro pálido e franzino. A todos, porém, falece igualmente o garbo marcial, a atitude e o desenvolvimento físico que caracterizam o soldado europeu. Homens altos e baixos, velhos e moços, indivíduos esbeltos e outros curvados pelo antigo labor de escravo formam ali uns ao lado dos outros, na mesma fila…”

Diante da fragilidade da Forças Amadas, D. Pedro I optou pela contratação de mercenários, soldados experientes em combate. O fim da era napoleônica trouxe paz à Europa e a desmobilização dos exércitos devolvera à vida civil milhares de soldados. Era uma geração criada na guerra e para o qual não havia emprego devido ao excesso de população dos países e Estados europeus. Porém, havia um problema: a legislação dos países proibia a emigração de ex-combatentes por uma questão de segurança nacional. A solução encontrada pelas autoridades brasileiras para driblar essa proibição foi a de misturar alguns poucos colonos com ex-combatentes, já que os primeiros eram autorizados a emigrar. Para cada grupo de ex-combatentes contratados teriam que vir algumas famílias de colonos.

Para a Marinha Imperial brasileira foram cooptados marinheiros ingleses. O Exército inicialmente tentou contratar mercenários franceses e suíços, estes últimos considerados os melhores soldados pela sua disciplina, mas por falta de recursos financeiros não pode fazê-lo. Alguns colonos suíços de Nova Friburgo abandonaram a agricultura em troca de um soldo fixo no Exército Imperial. Como o sogro de D. Pedro I era Imperador da Áustria tentou contratar mercenários austríacos, mas as autoridades deste país criaram obstáculos. Ainda se tentou cossacos russos, mas não lograram êxito. Finalmente, voltou-se para os alemães, numa Alemanha ainda não unificada. Pode-se afirmar que a imigração dos alemães ao Brasil está diretamente relacionada com a organização militar do país.

Georg Anton von Schäffer foi encarregado por José Bonifácio de obter o reconhecimento da Independência do Brasil junto à comunidade internacional e de cooptar mercenários nos Estados Alemães. O território germânico era constituído por 39 Estados, divididos em diferentes reinos, ducados e cidades livres. Os alemães aliciados por Schäffer compreendiam mercenários e colonos, estes últimos para disfarçar a contratação de ex-combatentes, como vimos proibido pelas leis internacionais. Os ex-combatentes viajariam às custas do governo brasileiro, serviriam durante 6 anos ganhando um soldo e terminado o serviço militar receberiam terras para cultivar.

Os Estados Alemães para fazer “vista grossa” e permitir Schäffer de arregimentar ex-combatentes exigiu que levasse criminosos, desocupados e mendigos. Uma prisão em Mecklenburg foi esvaziada e seus ocupantes despachados no navio Germânia para o Brasil. Portugal também o fez em relação ao Brasil no período colonial, mandando a ralé lusitana para povoar a Colônia; a Inglaterra enviou muitos criminosos quando colonizou a Austrália. Logo, era uma prática os países esvaziarem as suas prisões enviando a escória da sociedade às nações emergentes, constituindo uma política de verdadeira depuração nacional.

Schäffer vinha contrariando o governo brasileiro pois estava trazendo colonos demais. Foram muitas as correspondências oficiais encaminhadas a Schäffer ordenando que trouxesse o mínimo possível de colonos e o máximo de ex-combatentes. O governo brasileiro desejava os braços fortes dos alemães não para portarem enxadas, mas espingardas de pederneiras. Mas a cada navio que chegava a proporção de colonos aumentava, o que concorreu para a criação de inúmeras colônias de alemães pelo país. Foram os colonos dos primeiros navios Argus e Caroline que se estabeleceram em Nova Friburgo. O Argus trouxe 134 colonos e 150 ex-combatentes. Já o Caroline 180 colonos e somente 51 ex-combatentes.

Assim que chegaram ao Rio de Janeiro, os mercenários destes dois navios foram enviados para os quartéis e quanto aos colonos sugeriu-se juntá-los aos suíços em Nova Friburgo. Em 03 de maio de 1824 chegaram 342 colonos à vila serrana. Até o ano de 1829 chegaram ao Brasil 27 navios trazendo ex-combatentes e colonos alemães, estes últimos instalados em outras províncias do país. O Regimento de Estrangeiros também conhecido como Batalhão de Estrangeiros foi criado em 8 de janeiro de 1823. Constituído em sua maioria por ex-combatentes alemães, também havia irlandeses, assim como suíços. Com os ex-combatentes alemães vindos nos navios Argus, Caroline, Anna Louise e Germânia organizou-se as primeiras unidades mercenárias alemãs do Exército Imperial. A média de idade desses ex-combatentes era de 26 anos.

Desde a chegada dos primeiros navios até 1829, foram destinados 3.000 alemães às colônias, 4.000 ao serviço militar e 1.000 com destino ignorado. Sabe-se pelos quadros efetivos das unidades mercenárias alemãs, que apenas 3.000 mercenários foram de fato incorporados ao Exército Imperial. Muitos subornaram as autoridades brasileiras e passaram à condição de colonos. No total de homens alemães adultos que imigraram para o Brasil, a proporção foi para cada 3 ex-combatentes, havia 1 colono homem adulto, o que não agradou a D. Pedro I. Somente os ex-combatentes tinham suas passagens custeadas pelo governo brasileiro.

Em Nova Friburgo Peter Grieb(Gripp), 26 anos, assentou praça no Regimento de Estrangeiros. Irmão mais jovem do moleiro Balthasar Grieb, não seguiu com o irmão para Nova Friburgo. Teria sido forçado a assentar praça? Possivelmente sim, devido à sua idade e porte físico. O caso de Peter Grieb é objeto de controvérsia entre os pesquisadores Soares de Souza e Saldanha Lemos, que divergem quanto ao livre arbítrio que tiveram os colonos quando chegaram ao Rio de Janeiro. Para o primeiro, os colonos possuíam livre vontade sobre o seu destino, desde que tivessem pago as suas passagens. Porém, Saldanha Lemos demonstra em “Os Mercenários do Imperador” que mesmo vindo na condição colonos, alguns foram obrigados a servir nas Forças Armadas.

O Regimento de Estrangeiros ganhou uma proporção tamanha que o Ministro da Guerra alertou D. Pedro I quanto ao perigo representado por uma grande unidade de mercenários no Exército. O Regimento de Estrangeiros foi dividido em 2 Batalhões de Granadeiros e 2 Batalhões de Caçadores. No Batalhão de Granadeiros, devido ao peso dos artefatos eram escolhidos homens morrudos. Com o tempo, os granadeiros foram agrupados em tropas autônomas, uma tropa de elite, destinadas às missões de choque. O 2° Batalhão de Granadeiros foi escolhido para fazer a guarda do Palácio de São Cristóvão e segurança do Imperador e de sua família. Para esse batalhão eram escolhidos os mais altos, fortes e de melhor aparência.

O Batalhão de Caçadores, devido às desordens que provocavam no Rio de Janeiro ganhou dos cariocas a alcunha de Batalhão do Diabo, pois nas horas de folga viviam bêbados, provocando arruaças e sempre envolvidos em pancadarias com a população. Era o terror dos negros e dos donos de bodegas. Porém, o Batalhão do Diabo gozava de uma especial simpatia de D. Pedro I devido às suas bem alinhadas evoluções militares, lealdade e o Imperador se divertia com suas estripulias. Para exterminar um movimento insurrecional e separatista, conhecida por Confederação do Equador, iniciada no Recife e que se espalhou pelas províncias da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, D. Pedro I enviou para Pernambuco o Batalhão do Diabo que acabou com a rebelião trucidando os rebeldes.

Os mercenários lutaram na Guerra Cisplatina, mas não eram bem acolhidos nos quartéis. O ex-combatente alemão Schlichthorst desembarcou no Rio de Janeiro em 14 de abril de 1824, serviu durante 2 anos e retornou ao seu torrão natal, não cumprindo o prazo de 6 anos do serviço militar. Não gostava de Schäffer, lamentando ter sido engabelado por falsas promessas no Brasil. Schlichthorst deixou um interessante registro sobre o cotidiano dos mercenários do Regimento de Estrangeiros nos quartéis do Rio de Janeiro:

 “…Apesar de alistados em Hamburgo como colonos, no Rio de Janeiro eram imediatamente forçados a assentar praça. Só tinham liberdade para ir para onde quisessem os que havia pago suas passagens; mas estes mesmos às vezes abandonavam suas colônias e voluntariamente se engajavam, sendo, nesse caso, reembolsados pelo Governo […] suas refeições quase se limitam a arroz e feijão. Além disso, a carne que lhes dão é da pior qualidade […] Não se varia o alimento. Serve-se o rancho sem o menor asseio. O oficial-de-dia tem obrigação de provar a sopa, sendo realmente preciso grande força de vontade para engolir esse caldo nojento. O mais pobre escravo vive melhor, sem dúvida, do que o soldado estrangeiro no Brasil.[…]O que, no entanto, torna ainda mais intolerável a situação do soldado é a falta absoluta de qualquer comodidade nos quartéis. Em parte, não há sequer tarimbas e os homens dormem pelo chão em esteiras, com um cobertor. Atormentados por incontáveis insetos, procuram na cachaça alívio ao seu martírio e curto esquecimento de sua desgraça.[…] Não é difícil imaginar os excessos a que diariamente se entregam. A consequência é uma pancadaria bárbara, sendo raro o dia em que se não apliquem castigos de 50, 100 e até 200 chibatadas, nas costas nuas dos infelizes[…]Os de natureza mais forte sentem uma espécie de orgulho em dizer que suportaram durante seu tempo de serviço alguns milheiros de vergastadas. Diante de um tratamento desses, não é de admirar que as deserções sejam frequentes. Os que procuram o interior do país são logo agarrados, porém, os que tentam escapulir por mar, raramente são descobertos […] Castiga-se a deserção com 200 chibatadas nas costas nuas, dadas com finas vergastas de junco. Muitos as têm aguentado até quatro vezes, sem desistir de novas tentativas…”

No dia 12 de fevereiro de 1825, um grupo de 5 mercenários alemães, acorrentados uns aos outros, passou pela vila de Nova Friburgo. Acusados de deserção e presos em Cantagalo eram transportados por praças sob o comando de um sargento, que os conduzia ao Rio de Janeiro. Na vila, fizeram uma pequena parada no quartel e a partir de então passaram a ser seguidos por um colono alemão chamado Heinrich Bourgignon. De repente, ocorre algo estranho quando o grupo passa pela “vilagem dos alemães”. O sargento que comandava o grupo retira as correntes dos mercenários, que debandaram logo em seguida. Tudo indica que o sargento recebeu alguma quantia em dinheiro do colono para libertá-los. Bourgignon teve sua prisão decretada e foi realizado uma Inquirição, conduzida pelo capitão-mor de Cantagalo Manuel Vieira de Souza para apurar o caso. Este Termo de Inquirição está na documentação da Fundação D. João VI.

O quartel da Praia Vermelha, dos Barbonos e até o Mosteiro de São Bento serviram de instalação para os mercenários. Os prédios dos quartéis eram insalubres e infestados por ratos, mosquitos, escorpiões e bichos-do-pé. Na fortaleza da Praia Vermelha as baratas roíam as fardas destes soldados. Tudo isso somado a minguadas refeições, má qualidade da alimentação, doenças como a febre amarela, acrescido aos maus tratos por parte dos oficiais concorria para minar as forças físicas e o ânimo dos mercenários. Nos quartéis uma rotina de taponas, bordoadas, cachações, palmatórias, cipoadas, chicotadas e pranchadas eram utilizadas para manter a disciplina. Para servir como exemplo, os castigos eram aplicados diante da tropa formada com uma banda de música tocando retretas para abafar os gritos do castigado. A ordem era não refrescar para manter a disciplina. Um mercenário alemão foi condenado a 800 chibatadas e chegou a agüentar 500. Como escreveu Schlichthorst, as costas dos mercenários eram “pasto da chibata brasileira.”

Os soldos eram pagos com meses de atraso, chegando a atingir anos, e ainda vinham com descontos escorchantes. A tensão nos quartéis estava prestes a explodir e houve quem forneceu a pólvora. Em 09 de junho de 1828 uma revolta dos mercenários eclodiu quando um deles foi condenado a centenas de chibatadas porque não se recolhera ao quartel ao cair o pôr do sol. Em meio a aplicação do castigo surgiram vaias e imprecações por parte dos camaradas  contra o português Major Drago. De repente, eclodiu no ar um grito de revolta: “Matem o cão português!” A partir de então ninguém mais controlou a turba que perseguia os oficiais e matavam a todos que encontravam. Mercenários alemães e irlandeses se dirigiram para São Cristóvão e reivindicaram junto ao Imperador o fim dos castigos corporais e o pagamento dos soldos. No retorno ao quartel, como a cachaça e o vinho rolavam soltos, embriagados surravam quem encontravam pelo caminho.

A revolta se estendeu por três dias com o assassinato de oficiais, destruição dos quartéis, de casas e assaltos de armazéns em busca de vinho e cachaça. O álcool ingerido descontroladamente os transformava em uma turba furiosa e difícil de conter. A maiores vítimas eram os escravos, mortos como moscas. Indignados com as agressões e assassinatos, os senhores armaram seus escravos para que combatessem. Nesse embate, o Rio de Janeiro virou palco de uma das maiores carnificinas de sua história. Os escravos armados se defenderam deixando cadáveres de soldados mutilados pelas ruas. O furor homicida era praticado por ambos os lados. Somente quando as forças navais inglesas e francesas interviram, por solicitação de D. Pedro I, os mercenários se recolheram aos quartéis. Depois deste episódio, o Regimento de Estrangeiros foi extinto e proibido estrangeiros envergarem o uniforme do Exército Imperial Brasileiro.

Alguns ex-mercenários se dirigiram para Nova Friburgo como Paul Leuenroth(hoteleiro); Johannes Brust(tanoeiro e cervejeiro); Gottlob Friedrich Orberländer(marceneiro); Adalbert Pockorny; Johann Kehr(ferreiro); Heinrich Albert Köhrenkamp(marceneiro); Franz Anton Reiff, do Batalhão de Caçadores; Johann Daniel Schwab(sapateiro), do Batalhão de Granadeiros; Jacob Winter, do Batalhão de Granadeiros e Johann Jacob Wolf(alfaiate), sargento do Batalhão de Granadeiros. O ex-mercenário Friedrich Gustav Leuenroth inaugurou uma “casa de banhos” na vila, uma espécie de clínica médica em que se fazia uso da hidroterapia para o tratamento de doenças como a tuberculose. Posteriormente construiu o Hotel Leuenroth onde se hospedava D. Pedro II de passagem por Nova Friburgo.

Fonte: Juvêncio Saldanha Lemos em “Os Mercenários do Imperador”


Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora

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