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Documentar fazendas históricas: uma experiência no campo audiovisual

Em 2014 foi-me apresentado um desafio pela direção da Luau TV, canal de televisão fechada no município de Nova Friburgo (RJ), para adaptar artigos de história que eu escrevia em um jornal local para o audiovisual. Adaptar os artigos em roteiros para documentários neste canal era algo desafiador e me senti estimulada com esta provocação. Naquele momento passou pela minha mente um texto em movimento, com vozes e imagens, como aqueles desenhos animados em que os personagens na calada da noite saltam do livro ganhando vida. Aceitei a proposta e neófita iniciei os trabalhos no campo do audiovisual. O que seria tão somente uma temporada resultou em um trabalho de seis anos até que a Luau TV encerrasse as suas atividades em razão de uma crise financeira. Elaborei diversos formatos de programas como “História e Memória”(25 min), “Histórias da Gente Brasileira”(30 min), “Baú de Histórias” (3 min), “Raízes da Terra”(40 min) e finalmente “Por Dentro da História”(1h20min).

No presente artigo vou expor apenas sobre o último formato, porque o considero de melhor conteúdo. O objetivo era mostrar as fazendas históricas da região serrana fluminense tendo como âncora um historiador da localidade ou mesmo pessoas que tivessem informações sobre a história da região. Além das entrevistas reservava no documentário um espaço para que eu pudesse fazendo uso de voz-over apresentar o contexto em que aquela fazenda histórica estava inserida. Documentei no audiovisual as fazendas históricas do Canteiro (Trajano de Moraes), do Encanto(Sumidouro), da Quinta(Carmo), Colubandê(São Gonçalo), Penedo(Duas Barras), Praia da Areia(São Sebastião do Alto), Nossa Senhora dos Prazeres do Ribeirão Dourado(Cordeiro), Santa Inês(Miracema), Sant´Anna(Cantagalo), Santa Rita(Cantagalo), Mont Vernon(Cantagalo), Santo Antônio de Sapucaia(Sapucaia), São José(Carmo), São Lourenço(Sumidouro), Boa Vista(Sumidouro), Santa Cruz(Sumidouro), Boaventura(em Sumidouro), Vista Alegre (Sumidouro) e Cachoeiras do Amparo(Nova Friburgo). As fazendas São Clemente(Cantagalo), Areias(Cantagalo) e São Marcos(São Sebastião do Alto) somente visitei. Nas duas primeiras estava na iminência de obter autorização para filmar, mas a Luau TV encerrara suas atividades.

Nenhuma delas é tombada como patrimônio histórico. A dificuldade de documentar em audiovisual estas propriedades históricas decorre do fato de possuírem antiguidades muito valiosas nos ambientes internos da casa-sede. Cientes de que estes documentários são postados no youtube, os proprietários temem pela sua segurança e de seu patrimônio. Absolutamente compreensível, e por isto, solicito autorização para ser filmada apenas a parte externa da propriedade, incluindo a fachada da casa-sede.

Vale da Serra do Mar. Autoria Jean-Baptiste Debret. Acervo BN
Vale da Serra do Mar. Autoria Jean-Baptiste Debret. Acervo BN

Sertões do Macacu, assim era conhecida a serra fluminense situada na parte setentrional do vale do Paraíba do Sul. A serra do Mar, que compreende toda a vertente interior das serras da Boa Vista, dos Órgãos, Macabu e Macaé era coberta por uma densa floresta de ipês, sanandus, quaresmeiras, ibirapitanga, peroba, maçaranduba, braúna, sucupira, tapinoã, aroeira, jequitibá e cedro. Estes sertões são hoje os municípios de Cantagalo, Sapucaia, São Fidélis, Nova Friburgo, São José do Vale do Rio Preto, Três Rios, Cordeiro, São Sebastião do Alto, Itaocara, Carmo, Macuco, Sumidouro, Duas Barras, Bom Jardim, Trajano de Moraes, Santa Maria Madalena e Teresópolis. A carta topográfica da Capitania do Rio de Janeiro de 1767 indicava ser um sertão ocupado por indígenas bravos, não “civilizados”. No terceiro quartel do século XVIII, como a extração de ouro em Minas Gerais já apresentava sinal de declínio, garimpeiros atravessam a Zona da Mata mineira e se dirigem para os sertões do Macacu. Iniciam a garimpagem clandestina do ouro de aluvião nos afluentes dos rios Grande, Negro e Macuco. Ao abrigo da densa floresta faiscadores a exemplo de Manoel Henriques, o Mão de Luva, lavram sorrateiramente durante muitos anos pintas de ouro na região.

Com o conhecimento do garimpo clandestino, as autoridades governamentais prendem os faiscadores e o descoberto do ouro passa a ser explorado pela Coroa Portuguesa. Em Carta de 08 de janeiro de 1785, o Vice-Rei D. Luiz de Vasconcelos e Souza autoriza o povoamento daqueles sertões com vassalos úteis e industriosos, mediante a concessão de sesmarias aos que desejassem ali se estabelecer. Inicia com esta medida a ocupação oficial dos sertões do Macacu. Como esta região serrana pertencia ao município de Santo Antônio de Sá, os pareceres de pedidos de sesmaria, que originariamente eram da jurisdição da Câmara Municipal de Santo Antônio de Sá passam a ser da competência do vice-rei, que despacha por intermédio de um superintendente. Entretanto no decorrer de alguns anos verifica-se que o ouro extraído dos rios mal dava para pagar a estrutura administrativa e o governo desinteressa-se pela mineração. O povoamento tem continuidade com a distribuição de sesmarias para os que tivessem condições econômicas de se afazendar atraindo indivíduos da capitania de Minas Gerais e colonos portugueses da Ilha da Madeira e dos Açores. A região atraía igualmente posseiros que se instalavam na fronteira dos latifúndios.

Os sesmeiros derrubam a mata, preparam suas roças de milho, feijão e mandioca nas clareiras, criam porcos para comercializar mantas de toucinho e alguns estabelecem engenhocas para a fabricação de rapadura e cachaça. Estes produtos são exportados para o Rio de Janeiro utilizando tropas de mulas, que descem a serra da Boa Vista até atingir o porto fluvial de Porto das Caixas, hoje município de Itaboraí. Dali as mercadorias seguiam em barcos pelos rios Macacu e Caceribu que deságuam na Baía da Guanabara, rumo ao Rio de Janeiro. Os sertões do Macacu ganham o predicado de município em 1814, com a denominação de São Pedro de Cantagalo.

Vila de Cantagalo no século 19. Acervo pessoal
Vila de Cantagalo no século 19. Acervo pessoal

Inaugurando a primeira imigração de colonos não portugueses, entre novembro de 1819 e março de 1820, chegam ao Brasil 1.631 suíços para trabalharem no amanho da terra em uma colônia agrícola cultivando gêneros alimentícios. A região de maior altitude, próxima a serra da Boa Vista é desmembrada de Cantagalo em 03 de janeiro de 1820, para dar origem ao município de Nova Friburgo e acolher estes colonos. Possuindo um clima salubre e semelhante ao europeu facilita a aclimatação dos suíços e posteriormente dos colonos alemães que igualmente se instalam em Nova Friburgo. Como as glebas que receberam não possuíam, em boa parte, terras férteis para a lavoura, os suíços e alemães abandonam a colônia se dirigindo para Cantagalo e também em direção a outras freguesias de Nova Friburgo. A população de 1.662 suíços, em 1820, ficará reduzida a 632, dez anos depois.

Casa-sede possivelmente do século 18, em Cordeiro. Acervo pessoal
Casa-sede possivelmente do século 18, em Cordeiro. Acervo pessoal

Nos primeiros vinte anos após a independência, o Brasil atravessa dificuldades econômicas. O açúcar de beterraba introduzido no mercado mundial precipita o Nordeste em uma crise e a produção algodoeira norte-americana conquista os mercados, antes sob o controle do Brasil. No horizonte a esperança em relação ao café, que em razão da grande demanda de consumo na Europa e nos Estados Unidos começa paulatinamente a substituir o açúcar e o algodão na exportação. Nativo da Etiópia, o café vinha sendo plantado em pequena escala já na primeira década do século 19, em Cantagalo. Quando em 1809 o mineralogista John Mawe esteve neste município encontrou plantações de café, cujo cultivo se impõe como cultura dominante a partir da terceira década daquele século.

Como se torna o principal produto de exportação, os arbustos de café vão tomando paulatinamente o lugar dos gigantes da Mata Atlântica na região serrana fluminense. A historiografia do vale do Paraíba fluminense no Império se concentrou em municípios como Vassouras, Valença e Paraíba do Sul no sentido de compreender a dinâmica da economia cafeeira atrelada a mão-de-obra escrava. No entanto, Cantagalo, um dos maiores produtores de café foi ignorado pelos pesquisadores. De acordo com a historiadora Sheila de Castro Faria uma das explicações possíveis para mencionarem Cantagalo, apenas de passagem, nas pesquisas da história agrária do vale do Paraíba está no fato de a família Clemente Pinto ter recebido títulos de barão, conde e visconde de Nova Friburgo, o que poderia sugerir, para os que não conheciam a região, que suas terras estivessem em Nova Friburgo.

“Para se avaliar a riqueza da região, no recenseamento de 1872, em Cantagalo habitavam 29.453 pessoas, 57% delas (16.805), escravas. O município de Paraíba do Sul, considerado por João Fragoso um dos mais povoados do vale do Paraíba fluminense e de elevada concentração de população escrava nas mãos de uma poderosa elite, tinha 37.461 habitantes, 46% deles, escravos, proporção menor do que a de Cantagalo, do que se supõe que Cantagalo estava entre as principais regiões de cafeicultura escravista e mercantil de grande porte.” (FARIA, p.3, 2018)

Conforme Castro Faria o município de Cantagalo teve implementada a lavoura cafeeira talvez até antes de Vassouras, considerado o mais rico município da região no século 19. Em um de meus documentários postado no youtube sobre Cantagalo, uma pessoa identificada como “C Gribl” fez um curioso comentário. Segundo ele contava o seu avô, nascido em 1872, quando se enviava da Europa uma correspondência para Cantagalo, não se sobrescrevia no envelope o nome da província e sequer do Brasil. Bastava simplesmente colocar a localidade de Cantagalo. Na ocasião não acreditou neste relato. Certa feita visitando uma fazenda histórica deste município contou ao proprietário esta narrativa de seu avô e a sua descrença no fato. O proprietário da fazenda levou-o ao seu escritório, guarnecido por uma imensa estante com livros muito antigos. Pegando um deles retirou um envelope de dentro com um selo de 1870, que constava o nome do destinatário, da fazenda e apenas Cantagalo como indicação da localidade. Seu avô falara a verdade! Possivelmente em razão de Vassouras, Valença e Paraíba do Sul ostentarem casas-sedes mais suntuosas, os pesquisadores do vale do Paraíba fluminense se sentiram mais atraídos por estes municípios, deixando Cantagalo fora de seu radar.

No livro “Fazendas do Império”, organizado por Mary Del Priore e outros, edições Fadel, nenhuma fazenda de Cantagalo foi aludida. Já em “Solares da região cafeeira do Brasil Imperial”, roteiro de Fernando Tasso Fragoso Pires, da Nova Fronteira, as fazendas Gavião, Areias, São João de Monnerat, Bonsucesso e Ribeirão Dourado encontraram espaço no panteão das unidades de produção de café do vale do Paraíba fluminense.

Oratório da Fazenda Bonsucesso, em Cordeiro. Acervo Renato Monnerat
Oratório da Fazenda Bonsucesso, em Cordeiro. Acervo Renato Monnerat

Fui então a campo documentar no audiovisual as propriedades rurais da região serrana fluminense, no Império, que se dedicaram ao cultivo de café utilizando o modo de produção escrava. A negociação com os proprietários destas fazendas históricas foi lenta e penosa, quando iniciei o trabalho. Depois que apresentei os primeiros documentários fui ganhando a sua confiança e estabeleci uma relação de amizade com alguns deles, que me abriram oportunidades para novas pautas. Fiz um levantamento das fazendas históricas que poderiam ser objeto de meu trabalho sendo elas Gavião, Areias, Santa Rita, Boa Sorte, Boa Vista, São Clemente, Sant’Anna, Mont Vernon, Sossego, Nossa Senhora da Conceição do Rio Negro, Pouso Alto, Aldêa, Cafés, Lavrinhas, São José do Rio Negro, Soledade, Santa Clara, Bom Valle, Saudade, Santo Antônio do Rio Negro, Bom Sucesso, Val das Palmas, São Lourenço, Bemfica, Glória, Água Quente, da Lage, Santa Bárbara, Itaoca, Santa Thereza, Bemposta, Bomfim, Pouso Alegre, Pouso Alto, Fazenda São Marcos e Batalha. Esta enumeração não esgota a relação das unidades de produção de café na região serrana fluminense, no Império.

A seguir passo a fazer a explanação de minha experiência selecionando algumas fazendas históricas, onde produzi os documentários. Apresento um breve histórico, os seus atuais proprietários e o modo pelo qual vêm fazendo uso delas. A minha maior surpresa foi verificar que muitas delas, que pertenceram aos “barões do café”, foram adquiridas por descendentes de colonos suíços, notadamente pelos Monnerat.

Fazenda Arêas em Cantagalo do barão de Nova Friburgo. Acervo pessoal
Fazenda Arêas em Cantagalo do barão de Nova Friburgo. Acervo pessoal

A Fazenda Sant’Anna era de propriedade de José de Souza Brandão, o primeiro Barão de Cantagalo, casado com Josefa Maria de Souza Brandão, com quem teve seis filhos. O filho médico, Augusto de Sousa Brandão herda a Sant’Anna adquirindo o título de segundo Barão de Cantagalo. Esta propriedade rural tinha a dimensão de 800 alqueires, com 1 milhão e 500 mil arbustos de café. A falência do Barão de Cantagalo é atribuída ao fim do trabalho escravo, já que o mesmo imediatamente após a abolição ingressa no partido republicano culpando o regime monárquico pela sua miserável situação financeira. José Heggendorn Monnerat arremata a Sant’Anna em 1900, em leilão em praça pública.

Na sucessão hereditária esta propriedade coube a Sebastião Monnerat Lutterbach que manteve a produção de café, mas introduziu a criação de gado da raça indiana zebu como atividade econômica da fazenda. O médico Renato Monnerat, tetraneto de Sebastião Monnerat Lutterbach adquiriu a Sant’Anna de terceiros para manter a propriedade na família. Seus pais são pecuaristas em Cantagalo possuindo uma propriedade rural, porém Renato Monnerat sempre teve o desejo de adquirir a Sant’Anna que pertencera aos seus antepassados trazendo-a de volta aos Monnerat. Os 800 alqueires foram desmembrados em diversas propriedades e hoje dificilmente encontraremos fazendas com a mesma extensão no período do Império, em razão da sucessão hereditária.

Parte da casa-sede da Fazenda Sant'Anna em Cantagalo. Acervo pessoal
Parte da casa-sede da Fazenda Sant’Anna em Cantagalo. Acervo pessoal

Pouco restou do imenso complexo produtivo e de sua grandeza no passado. Originalmente a casa-sede era ligada a uma edificação com dois pavimentos que fazia conexão com o prédio do engenho. Permaneceram apenas a casa de vivenda e o engenho sendo demolida a edificação central. O prédio do engenho que abrigava, no térreo, a casa de farinha e polvilho e, no pavimento superior, as oficinas foram restauradas e transformadas em dois belíssimos salões. Um destes salões recebeu o nome do historiador suíço Martin Nicoulin, que escreveu o antológico livro “A Gênese de Nova Friburgo”. Renato Monnerat aproveitou a visita de Nicoulin ao Brasil e inaugurou o salão com a sua presença.

Criou um centro de memória com o antigo maquinário e instrumentos de trabalho da fazenda como o engenho de moenda de cana, o moinho de fubá, o descaroçador de feijão, as imensas caixas de madeira onde era depositado o açúcar, instrumentos de arado, entre outras preciosidades. Não é uma fazenda produtiva e não está aberta à visitação pública. O elo que Renato Monnerat mantêm com a história de sua família o incentivou a receber no bicentenário de Nova Friburgo, os suíços que vieram para a festividade em um almoço na Sant’Anna. Realizei a cobertura desta visita e chamou-me a atenção o assombro dos suíços quando souberam da dimensão de 800 alqueires desta propriedade no passado. O prefeito de um cantão da Suíça exclamou: “C’était plus grand que mon canton”, ou seja, era maior que o meu cantão. Neste momento pude entender por que os colonos suíços abandonaram suas datas de terras de 1.080.000 m², para dividir por três famílias, em busca das terras devolutas e férteis de Cantagalo.

O historiador suíço Martin Nicoulin ao lado de Renato Monnerat. Acervo pessoal
O historiador suíço Martin Nicoulin ao lado de Renato Monnerat. Acervo pessoal

Francisco Clemente Pinto, primo do primeiro Barão de Nova Friburgo era proprietário de dez fazendas em Cantagalo. Com o seu falecimento uma de suas propriedades, a Fazenda São Clemente é herdada pelo seu sobrinho homônimo. Com dimensão de 700 alqueires, no ano de 1883 há o registro de que possuía 750.000 arbustos de café. Foi visitada pelo diplomata Johann Jakob Von Tschudi e pelo Imperador D. Pedro II. No ano de 1907, Francisco Clemente Pinto recorre a um empréstimo hipotecário, e como não consegue honrar o financiamento perde a fazenda para o banco, arrematada pelo coronel José Affonso Fontainha Sobrinho. Na sucessão, a São Clemente passa dos Fontainha ao clã Monnerat, adquirida em 1920 pelo coronel João Henrique Monnerat. Depois de sucessivos proprietários entre os Monnerat, a São Clemente passa a pertencer a Marcello Cardoso Monnerat em 1990, sem a dimensão originária de 700 alqueires. Tive o privilégio de conhecer a São Clemente, uma prerrogativa para poucos, já que Marcello Monnerat não disponibiliza o acesso com facilidade. Mas foi tão somente uma visita pois há resistência do proprietário em documentar em audiovisual a sua fazenda.

Na São Clemente, o pomar-parque de Auguste François Marie Glaziou. Acervo pessoal
Na São Clemente, o pomar-parque de Auguste François Marie Glaziou. Acervo pessoal

É proibido tirar fotos dos ambientes internos que possuem um mobiliário de diversos estilos tais como Império, Luís XV, Luís XVI e valiosas faianças de porcelana dos Clemente Pinto, arrematadas em leilões. No entanto, a maior grandeza desta propriedade é o pomar-parque que Marcello Monnerat se ocupa da manutenção tendo como referência à tela de Henry Walder de 1895, que ilustra vários aspectos da São Clemente. Tudo indica que o pomar-parque foi concebido pelo paisagista Auguste François Marie Glaziou, que servia ao Imperador D. Pedro II. De acordo com Marcello Monnerat, Glaziou utilizava em seus projetos paisagísticos várias espécies que se encontram na São Clemente como a sapota-preta ou fruta-pudim-de chocolate, nativa do México e da América Central; o pêssego-da-Índia de casca aveludada nativa das Filipinas e cultivada na Índia, Malásia e Indonésia; o jambo-de-malaca ou jambo-roxo nativa da Malásia, Tailândia e Singapura; a babosa-branca nativa da Mata Atlântica; a ameixa-de-Madagascar nativa da África tropical e de Madagascar e a árvore-do-viajante, originária igualmente de Madagascar. Palmeiras imperiais atravessam o pomar-parque assim como arecas, sagus, mangueiras, dentre outras espécies que circundam a propriedade. Ficou a promessa de uma possível filmagem da área externa e de alguns ambientes internos, uma expectativa que me acompanha até os dias de hoje.

O que me causou muita surpresa neste trabalho foi tomar conhecimento de que duas famílias colonas suíças, Lemgruber e Lutterbach contribuíram com o melhoramento da genética do gado bovino no Brasil. O casal Ignaz Lemgruber e Luzia Hartmann chegam a Nova Friburgo acompanhados dos filhos Anton Ignaz, Fridolin, Johann Batista, Marcus, Maria Carolina e Fidel. Como fizeram muitos colonos na diáspora abandonaram Nova Friburgo se dirigindo para Cantagalo. Sua ascensão econômica é surpreendente. Pouco mais de uma década desde a sua chegada, o patriarca e seus filhos são proprietários de inúmeras fazendas de cultivo do café e com um significativo plantel de escravos.

O aumento do patrimônio dos Lemgruber decorre de alianças matrimoniais com famílias suíças e em razão de casamentos entre primos. Os Lemgruber se casaram com os Luterbach, Ubelhard, Monnerat, Wermellinger, Herdy, Boechat e Daflon. O primogênito Anton Ignaz Lemgruber foi quem acumulou maior patrimônio e o seu filho, Manoel Ubelhard Lemgruber introduziu uma nova atividade econômica na região, a pecuária. Formado em engenharia, Manoel Lemgruber fez os seus estudos na Inglaterra e na Alemanha. Além de cafeicultor era proprietário de uma fundição no Rio de Janeiro fabricando variados tipos de peças de metal como rodas d’água, cremalheiras, placas, grades, etc. Importou lotes de touros e vacas da Índia da raça zebu que conheceu em uma de suas viagens a Alemanha.

Manoel Lemgruber introduziu o gado zebu no Brasil. Acervo Paulo Lemgruber
Manoel Lemgruber introduziu o gado zebu no Brasil. Acervo Paulo Lemgruber

Na Fazenda Santo Antônio de Sapucaia desenvolve a criação desta raça dedicando especial atenção à preservação de sua pureza e iniciando uma progênie que seria conhecida como Nelore Lemgruber. Os pecuaristas lidavam com um gado de origem europeia mestiça, sem grande produtividade e a raça zebu passa a ser utilizada como aprimoramento genético dos rebanhos nacionais. Inúmeros cafeicultores fluminenses seguiram o exemplo de Manoel Lemgruber diversificando a atividade econômica de suas fazendas. Entrevistei o neto dele, o senhor Paulo Lemgruber, na Fazenda São José, no município do Carmo, onde preserva a linhagem fechada do valioso patrimônio genético legado de seu avô.

Fazenda Santo Antônio de Sapucaia, em Sapucaia, berço do gado zebu no Brasil. Acervo pessoal
Fazenda Santo Antônio de Sapucaia, em Sapucaia, berço do gado zebu no Brasil. Acervo pessoal

A Fazenda São José não é histórica e sua atividade consiste exclusivamente na produção de sêmen do gado zebu. Já a Santo Antônio de Sapucaia, berço do gado zebu no Brasil, mantém bem preservada a casa-sede e todo o complexo do século 19. O atual proprietário que não quiz se identificar e se dedica a criação de gado e de cavalos de raça importados de países europeus e asiáticos. Júlio Cézar Lutterbach, terceira geração desde o patriarca Joseph Jean Constantin, igualmente importou da Índia a raça zebu, diversificando os negócios, mesmo quando o café representava o principal item de exportação do Brasil. A Fazenda da Glória onde os Lutterbach iniciaram a criação da raça zebu não tem mais a casa-sede histórica. Surge a problemática de saber se a ligação dos suíços com a pecuária foi meramente acidental ou fruto de uma tradição de seus cantões de origem. Na Suíça a tradicão da poya, transumância das vacas leiteiras aos campos de pastagem floridos nos pré alpes conduzidas pelos pastores, les armaillis, nos leva a crer que esta cultura possa ter contribuído para o interesse na pecuária pelos descendentes de colonos suíços.

Lemgruber, Lutterbach e Monnerat casavam-se entre si. Acervo Júlio Lutterbach
Lemgruber, Lutterbach e Monnerat casavam-se entre si. Acervo Júlio Lutterbach

Duas fazendas históricas abertas à visitação que documentei no audiovisual têm uma especial particularidade. Estando inseridas no circuito de turismo rural, além de o visitante desfrutar de uma atmosfera histórica conhece uma propriedade em plena atividade produtiva. São elas as fazendas do Canteiro e Sossego. A Fazenda do Canteiro em Trajano de Moraes era propriedade da família Moraes, os barões das Duas Barras. A casa-sede recebeu intervenções ao longo dos anos que alterou a sua volumetria, bem como a divisão interna dos ambientes. O grande destaque na propriedade é o aqueduto do século 19, pelo qual passa a água vinda dos morros que movimentava os engenhos, a roda d´água e o moinho para a fabricação de fubá de milho.

Além das palmeiras imperiais possuiu uma reserva florestal de aproximadamente 50 hectares, que envolve toda a propriedade, garantindo um microclima diferenciado. A fazenda pertence atualmente ao casal Roberto Wellem Etz e Teresa Cristina Vieira Machado Etz. A atividade econômica da propriedade é o cultivo de variados tipos de frutas, notadamente da goiaba, legumes e hortaliças, pecuária de corte, enfim o agronegócio. Recebe hóspedes em aconchegantes bangalôs ou através de visita programada no sistema Day Use em que o cardápio é sempre a tradicional feijoada e caipirinha, cuja cachaça é produzida na Canteiro.

Aqueduto em primeiro plano na fazenda do Canteiro em Trajano de Moraes. Acervo pessoal
Aqueduto em primeiro plano na fazenda do Canteiro em Trajano de Moraes. Acervo pessoal

Localizada em Cantagalo, a Fazenda Sossego é uma típica propriedade rural produtora de café do século XIX. A casa-sede foi construída na década de 1830, recebendo acréscimos ao longo do tempo. No ano de 1901 foi adquirida pelo coronel Sebastião Monnerat Lutterbach, o mesmo proprietário da Fazenda Sant’Anna que já nos referimos. Atualmente pertence ao casal Rogério e Lúcia Daflon, nome de família suíço. A partir da decadência progressiva da economia cafeeira, a Fazenda Sossego volta sua atividade econômica exclusivamente para a criação de gado leiteiro. De todas as propriedades rurais que documentei foi a que mais me conduziu a uma atmosfera de fazenda oitocentista.

 Na cozinha sobre o fogão a lenha vi pela primeira vez um fumeiro, uma espécie de gaiola em ripas de madeira onde eram penduradas as rapaduras. O calor do fogão e a fuligem mantinham a rapadura seca impedindo-a de derreter ou azedar. Na decoração dos ambientes internos, antigos objetos da fazenda viram peças de decoração, a exemplo de uma roda de carro boi e um recipiente de madeira para transportar o porco abatido que vira uma mesa de centro ganhando um tampo de vidro. Um móvel de madeira para depósito de cereais, o berrante, o latão de leite, o velho pilão com as marcas de uso, entre outras peças nos remete a uma miríade de memórias afetivas. No belíssimo paiol existe um centro de memória que nos permite conhecer através de seu acervo, os instrumentos de trabalho da atividade rural no passado.

Fazenda Sossego em Cantagalo é produtiva e recebe turistas. Acervo pessoal
Fazenda Sossego em Cantagalo é produtiva e recebe turistas. Acervo pessoal

Uma curiosidade da casa-sede é a ligação de um dos quartos ao porão onde dormiam os escravos domésticos. Levantando-se um tampo de madeira no chão surge uma escada com acesso ao porão. Teria sido o quarto destinado ao ingresso de escravas, durante a noite, para ter relação sexual forçada com o proprietário da fazenda? Outro cômodo curioso é a alcova contígua à sala social onde dormiam os viajantes que vinham fazer negócios na fazenda. Durante o repouso noturno eram trancados, quando todos se recolhiam. Era uma forma de resguardar as moças da casa ou para evitar o roubo de dinheiro ou objetos de valor e a fuga, já que o quarto não possui janela.

Tive dúvidas se era pertinente colocar, mas como fez parte de meu trabalho fica registrado que quase morri nesta fazenda. Filmávamos no curral a retirada o leite quando uma vaca ameaçou me atacar. Percebendo o perigo gritei por socorro e o encarregado numa velocidade extraordinária saiu de dentro do curral e saltou na minha frente, espantando-a. Como eu estava encostada em uma grossa barra de ferro do lado de fora do curral, caso o animal me atacasse iria me esmagar contra esta barra. A partir de então passei a ter mais cautela.

Fui salva na filmagem pelo encarregado da fazenda de um ataque de uma vaca. Acervo pessoal 
Fui salva na filmagem pelo encarregado da fazenda de um ataque de uma vaca. Acervo pessoal

Visitei a Fazenda Penedo em Duas Barras, uma típica unidade de produção de café, que originariamente possuía 250 alqueires. A casa-sede foi construída em 1881 pelo Barão de Aquino e em 1922, já pertence ao capitão José Monnerat Junior. Na sua administração a fazenda produzia anualmente 2.000 mil arrobas de café, cultivando ainda milho e arroz, fabricava rapadura, cachaça e dedicava-se a criação de gado. Esta propriedade foi vendida em 1924 a José Araújo de Barros, imigrante português natural da Ilha da Madeira. A Penedo atualmente com 44 alqueires é de propriedade de Roberto de Melo Araújo e Adriana Araújo. Investiram no sistema Day Use, pioneiros nesta iniciativa, se diferenciando dos demais já que não exigem prévio agendamento abrindo aos visitantes todos os finais de semana e feriados. Estando a propriedade no terceiro ciclo econômico, após o cultivo do café e da criação de gado leiteiro, os Araújo se mantêm apenas com a produção de cachaça e o turismo rural.

Na fazenda Penedo vivenciei o turismo rural, do day use. Acervo pessoal
Na fazenda Penedo vivenciei o turismo rural, do day use. Acervo pessoal

A Fazenda de Nossa Senhora dos Prazeres do Ribeirão Dourado, no município de Cordeiro pertence aos Moraes, os barões das Duas Barras. Uma particularidade é que os Moraes são um raro exemplo de família que mantém algumas propriedades oitocentistas herdadas de seus ancestrais. Se encontram na sétima geração e preservam cinco das vinte e duas propriedades rurais históricas da família. Como dito antes, a ocupação dos sertões do Macacu se deu por mineiros e João Antônio de Moraes foi um deles. Nascido em 1810 casa-se com a cunhada Basília Rosa da Silva, viúva de seu irmão Antônio Rodrigues de Moraes. Encarrega-se da administração dos negócios da família, dos cinco sobrinhos e dos quatro filhos que teve com Basília. Torna-se um rico fazendeiro-capitalista acumulando um patrimônio em terras, escravos, pés de café, dívidas ativas e dinheiro em espécie, o que lhe rendeu, em 1867, o título de primeiro Barão das Duas Barras.

Casa-sede da Fazenda N. S. dos Prazeres do Ribeirão Dourado, em Cordeiro. Acervo pessoal
Casa-sede da Fazenda N. S. dos Prazeres do Ribeirão Dourado, em Cordeiro. Acervo pessoal

Além das fazendas Santa Maria do Rio Grande, berço dos Moraes, e Macabu, ao longo dos anos adquiriu outras vinte sendo elas Barra, Bonança, Boa Esperança, Canteiro, Coqueiro, Córrego Alto, Engenho da Serra, Engenho Velho, Freijão, Glória, Grama, Monte Café, Neves, Olaria, Paraíso, Nossa Senhora dos Prazeres do Ribeirão Dourado, Rio São João (em Minas Gerais), Sant’Alda, São Lourenço e Sobrado. A família Moraes gerou outros nobres como José Antônio de Moraes, segundo filho de Basília com Antônio Rodrigues de Moraes, que recebeu o título de barão e posteriormente de Visconde de Imbé. O município de São Francisco de Paula teve a sua denominação alterada para Trajano de Moraes, filho do visconde.

A Fazenda Ribeirão Dourado que documentei, de 500 alqueires atualmente possui 50 e a casa-sede data de 1805. Os herdeiros desta propriedade aderiram ao roteiro turístico organizado pela prefeitura de Macuco que inclui também as fazendas Bonsucesso, Benfica e Boa Vista. Um centro de memória foi instalado na Ribeirão Dourado reunindo peças antigas de objetos pessoais, utensílios da vida cotidiana na propriedade, carruagens e tróleis. O que mais me chamou a atenção foi um leque com mensagens trocadas entre duas pessoas apaixonadas. A astúcia era escrever frases no corpo do leque, em francês, fechá-lo e entregar ao amante para que fizesse a leitura. São estas preciosidades que nos mostram como nossos ancestrais conseguiam ultrapassar as barreiras de amores proibitivos. A Ribeirão Dourado não é uma fazenda produtiva e sua atividade econômica é voltada exclusivamente para o turismo rural.

Antônio Clemente Pinto, o primeiro Barão de Nova Friburgo possuía em Cantagalo as fazendas Gavião, Areias, Boa Sorte, Boa Vista, Santa Rita, Jacotinga e Itaoca. Como eu preparava um documentário sobre o barão resolvi fazer imagens da Fazenda Gavião utilizando um drone, ciente que o atual proprietário Pedro Pitta, jamais me autorizaria filmar as instalações. Evidentemente a minha atitude está totalmente incorreta, caracterizando inclusive crime de violação da propriedade privada, pois eu deveria ter autorização para a filmagem. Todavia a minha obsessão em ter imagens desta propriedade, projetada pelo arquiteto alemão Carl Friedrich Gustav Waehneldt, o mesmo do palácio Nova Friburgo, hoje Museu da República, retirou de mim toda a censura de meu ato. Parei com a equipe de filmagem em frente a Gavião, cuja casa-sede fica hoje próxima a uma rodovia, não muito distante do asfalto.

Fazenda do Gavião do barão de Nova Friburgo. Acervo pessoal
Fazenda do Gavião do barão de Nova Friburgo. Acervo pessoal

Quando começamos a nos preparar para subir o drone, um homem na faixa etária de 50 anos, de bermuda curta e sem camisa carregando um balde de latão se aproximou inquirindo-me sobre o que fazíamos no local. Mentindo respondi com firmeza e determinação que eu tinha a permissão do Sr. Pedro Pitta, para filmar a fachada da Gavião. A seguir ele gritou comigo dizendo que eu estava mentindo, pois ele era o Pedro Pitta e não me deu nenhuma autorização. Eu fiquei totalmente desconcertada pois jamais imaginaria que aquele homem seminu carregando um balde como um encarregado da fazenda fosse o Pedro Pitta. Eu tinha ciência de que em Cantagalo ele era conhecido como violento, que faz uso de drogas e muito álcool. Imediatamente saquei o meu celular mostrando a ele a minha conta no youtube, com os documentários que havia produzido em fazendas históricas. Curiosamente me deu atenção se sensibilizando com o meu trabalho. Ele me pediu para ligar mais adiante, trocamos os números de celular, mas naquele dia não autorizaria a filmagem. No entanto, sempre que eu ligava, dava desculpas alegando obras na propriedade.

Outrora Cantagalo, o município Duas Barras possui muitas fazendas históricas do ciclo do café. Documentei a Fazenda Conceição do Pinheiro, de José de Aquino Pinheiro, o Barão de Aquino, cuja casa-sede foi concluída em 1880. Nascido em 07 de março de 1837 era filho de família tradicional. O seu pai o tenente-coronel Joaquim Luiz Pinheiro, de origem portuguesa, recebeu os títulos de Barão do Paquequer e depois Visconde de Pinheiro. O esgotamento do solo, o surgimento de pragas na lavoura, acrescido à abolição da escravidão provocou a falência de inúmeros barões do café. Da opulência à ruína foram perdendo suas fazendas por dívidas vendidas em hasta pública ou a particulares. O Barão de Aquino faleceu em 1921, aos 84 anos de idade na Fazenda Santa Mônica, em Sumidouro. Logo em seguida a sua morte, a Conceição do Pinheiro foi vendida a Regino Monnerat. Trata-se de mais um caso de descendentes de colonos suíços adquirindo propriedades rurais da nobreza fluminense. O que me levou a documentar esta propriedade foi em razão de tratar-se de uma das maiores casas-sedes na região serrana fluminense. A fazenda pertence atualmente a Aloisio Feiteira Silveira sendo produtiva e se dedicando a pecuária leiteira e de corte.

Fazenda Conceição do Pinheiro de criação de gado. Acervo pessoal
Fazenda Conceição do Pinheiro de criação de gado. Acervo pessoal

No município de Sumidouro documentei a Fazenda Santa Cruz, na outrora freguesia de Nova Friburgo, denominada de Nossa Senhora da Conceição do Paquequer, que pertencia a família Souza Jordão. As ruínas de pedra da Ponte Seca que servia à linha férrea e os três túneis de passagem do trem agregam valor à paisagem local. A restauração da casa-sede vem sendo feita pelo atual proprietário, Miltolino Donin de Souza, que pretende transformá-la em pousada. Além da casa-sede do século 19 são preciosidades da Santa Cruz a coleção de carros de boi e os engenhos de pilões restaurados, que compõem o acervo do centro de memória da propriedade. Miltolino de Souza é pecuarista possuindo outras fazendas em Sumidouro, mas na Santa Cruz apenas produz cachaça. Quando realizava as filmagens fiquei sabendo pelo historiador local Marcelo Vieira de Almeida, que infelizmente virou uma prática de alguns proprietários de fazendas históricas em Sumidouro vender o prédio da casa-sede. Duas delas foram desmontadas, pedra por pedra, para serem remontados em fazendas no Estado de São Paulo. Um proprietário recebeu a proposta de aquisição de um portão de ferro e de um muro de pedras do cemitério de sua fazenda. Até mesmo a escada de um sobrado histórico foi vendida para um amante de antiguidades.

Na Santa Cruz vem sendo criado um centro de memória. Acervo pessoal
Na Santa Cruz vem sendo criado um centro de memória. Acervo pessoal

Igualmente em Sumidouro documentei a Fazenda Bela Vista, de propriedade de Antônio e Iara Wermelinger, descendentes de colonos suíços. Fiquei impressionada com os inúmeros artefatos antigos que os proprietários localizaram escavando os arredores da fazenda. Entre os objetos, cachimbos de escravos e muitas moedas foram encontradas sendo a mais antiga de fins de século XVIII. Encontrando o Sr. Miltolino de Souza, acima citado, em certa ocasião, ele me disse que comprou todos estes objetos assistindo ao documentário que fiz sobre a Bela Vista. A casa-sede não existe mais e de acordo com a memória oral ocorreu uma rebelião de escravizados culminando com a destruição dela.

Em minhas pesquisas localizei em artigos de jornais do século 19, dois levantes de escravizados ocorridos nesta região em 1873 e 1877. O primeiro foi na Fazenda da Boa Vista e o segundo culminou com o assassinato do comendador Joaquim José dos Santos, mas o artigo não faz referência à propriedade. Logo é possível que tenha havido nesta fazenda uma insurreição. O que mais me surpreendeu ao documentar a Bela Vista foi uma prisão dentro da senzala de estrutura de pedra. Consiste em um corredor estreito com uma pequena abertura que possivelmente teria uma grade de ferro.

Prisão dentro da senzala na fazenda Bela Vista, em Sumidouro. Acervo pessoal
Prisão dentro da senzala na fazenda Bela Vista, em Sumidouro. Acervo pessoal

Em Sumidouro entrevistei uma descendente de escravizados que tem a memória familiar da época da escravidão. Maria Maura da Silva disse que sua avó contava ao seu pai, que na fazenda onde era escravizada, toda noite, ela e as outras cativas tinham como obrigação procurar baratas nos buracos das paredes de pau-a-pique do sobrado. Catavam as baratas usando um espeto de bambu e as colocavam numa cuia. Tinham que apresentar a nhanhá e ao nhonhô a cuia cheia. Enquanto não enchessem a cuia com baratas não poderiam dormir. Nesta região são raras as fazendas que mantiveram as senzalas. Na Fazenda Santa Rita que documentei, uma das mais lucrativas do primeiro Barão de Nova Friburgo, a casa-sede não existe mais, mas a imensa senzala de pedra para os mais trezentos escravos encontra-se bem conservada.

De todos os municípios que fizeram parte da Magna Cantagalo o único que permanece produzindo café em larga escala é município de Bom Jardim, e notadamente pela família Erthal. O patriarca Joseph Erthal veio em 1824 para Nova Friburgo, juntamente com outros colonos alemães, para tomar posse das datas de terras abandonadas pelos colonos suíços. Casou-se com a conterrânea Anna Barbara Muller deixando vasta descendência. A família Erthal é a maior produtora de café do Estado do Rio de Janeiro. Além do mercado interno exporta para diversos países. Entrevistei Miguel Erthal, tataraneto de Joseph Erthal que mantém até hoje a mesma atividade econômica de seu ancestral cultivando café em onze fazendas. Na região serrana fluminense ninguém mais cultiva o café de montanha. A atual geração dos Erthal possivelmente será a última a produzi-lo. Isto se deve a impossibilidade de concorrer com o café plantado nos vales, que permite a mecanização com tratores e maquinários de colheita tornando-se mais barato no mercado.

Miguel Erthal, tataraneto do colono alemão Joseph Erthal. Acervo pessoal
Miguel Erthal, tataraneto do colono alemão Joseph Erthal. Acervo pessoal

O barro dos morros é o ideal para o cultivo do café, mas a geografia montanhosa da serra fluminense não permite a completa mecanização, a não ser fazendo uso de braçadeiras na colheita. Porém com este método, o preço do café de montanha se torna mais caro e a tendência é a sua completa extinção das terras fluminenses. Quando o trabalho era feito por escravizados competiam com os paulistas em iguais condições. Aloísio Erthal, trineto do patriarca, tem uma frase emblemática: “O café tem praga de escravo e capa de velhaco”. Praga de escravo devido a exploração de africanos nas lavouras de café. Capa de velhaco porque os cafeicultores no passado ficavam nas mãos dos comissários de café. No futuro, infelizmente, não avistaremos mais na rodovia, por quem passa por Bom Jardim, as belíssimas plantações de café que registrei no documentário.

Realizando documentários de fazendas históricas na região serrana fluminense percorri diversos municípios. Porém a paisagem me deixou perplexa, sem traço algum da floresta primária nos morros meio-laranjas. Indubitavelmente terra arrasada. Em aproximadamente oito décadas os cafezais substituiriam a Mata Atlântica provocando as mais profundas mudanças ambientais. A antiga diversidade natural do ecossistema foi substituída por uma única espécie de planta, arbustos de milhares de cafeeiros, que tornou o ambiente muito mais vulnerável aos ataques de pragas e a adversidades climáticas modificando o regime de chuvas, alterando a sua regularidade e gerando períodos de seca.

Atualmente o cenário ambiental da região serrana fluminense caracteriza-se por extensas áreas de pastagens com manchas isoladas de capoeiras. Após a rápida passagem do café ao longo do vale do Paraíba, com a introdução da pecuária, os cascos do gado entelham trilhas em forma de faixas em ziguezague, que aumenta a intensidade do desgaste dos solos. O resultado destas ações é o surgimento de voçorocas e outras formas de erosão, assoreando os rios, e deixando a paisagem com um aspecto de intensa degradação. A monocultura cafeeira mudou irreversivelmente um regime hidrológico típico de uma floresta tropical pluvial para o de uma savana. Foi prazeroso documentar em audiovisual as fazendas históricas do ciclo do café na região serrana fluminense. No entanto, para além da casa-grande, a paisagem é desoladora.

FONTE: Texto reproduzido da revista do Instituto Histórico e Geográfico de Itaboraí, no qual sou sócia correspondente.


Janaína Botelho – Serra News

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