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O café e o desastre ambiental na Serra Fluminense

No alvorecer do século 19 a serra do Mar, que se estende do Nordeste ao Rio Grande do Sul e compreende na região serrana fluminense as serras da Boa Vista, dos Órgãos, Macabu e Macaé era coberta por uma densa floresta da Mata Atlântica. Entre suas espécies arbóreas mais da metade era endêmica, ou seja, só existiam nesta região, algumas com 35 metros de altura. Certas espécies de beija-flores, sanhaços, marsupiais, preguiças, sagüis, pererecas e patiobas, entre inúmeros outros animais estão limitados à Mata Atlântica. Dois terços dos nomes das árvores e praticamente de todos os seus animais são de origem tupi-guarani. Conhecida como sertões do Macacu, o desmembramento desta região vai dar origem aos municípios de Cantagalo, Nova Friburgo, Cordeiro, São Sebastião do Alto, Itaocara, Carmo, Sumidouro, Duas Barras, Bom Jardim, Trajano de Moraes, Santa Maria Madalena e Teresópolis.

A carta topográfica da Capitania do Rio de Janeiro de 1767 indicava os sertões do Macacu ocupado por indígenas bravos. No final do século 18, como a extração de minérios preciosos em Minas Gerais já apresentava sinal de declínio, garimpeiros atravessaram a Zona da Mata mineira e se dirigiram para aqueles sertões. Iniciam clandestinamente a garimpagem do ouro de aluvião nos afluentes dos rios Grande, Negro e Macuco. Ao abrigo da floresta puderam lavrar sorrateiramente durante muitos anos pintas de ouro na região. Tomando conhecimento do garimpo clandestino, as autoridades governamentais prendem os faiscadores liderados por um indivíduo conhecido como Mão de Luva. O povoamento oficial destes sertões ocorre a partir de 1786 com a distribuição de sesmarias para exploração do ouro. Porém no decorrer de alguns anos verifica-se que o ouro extraído mal dava para pagar os soldados e o governo colonial desinteressa-se pela mineração. O povoamento tem continuidade com a distribuição de sesmarias para os que tivessem condições econômicas de se afazendar como lavradores.

Vale da Serra do Mar. Jean-Baptiste Debret. Acervo Biblioteca Nacional
Vale da Serra do Mar. Jean-Baptiste Debret. Acervo Biblioteca Nacional

Latifúndios se estendem pelas vargens, chapadas e socavões. São derrubadas da floresta  árvores como jacarandá, pau-rosa, ipecacuanha, ipês, sanandus, quaresmeiras, ibirapitanga, peroba, massaranduba, braúna, sucupira, tapinoã, aroeira, jequitibá e cedro. Era o primeiro passo para a exploração da terra. Os sesmeiros comercializaram a madeira, cultivaram roças de milho, feijão e mandioca nas clareiras, criaram porcos e alguns estabeleceram engenhocas para a fabricação de açúcar e farinha de mandioca. Estes produtos eram comercializados no Rio de Janeiro e transportados em tropas de mulas que desciam a serra da Boa Vista até atingir o porto fluvial de Porto das Caixas, hoje município de Itaboraí. Dali as mercadorias seguiam em barcos pelos rios Macacu e Caceribu que deságuam na Baía da Guanabara, rumo ao Rio de Janeiro. Os sertões do Macacu ganham o predicado de município em 1814, com a denominação de São Pedro de Cantagalo. A distribuição de novas sesmarias pela Coroa portuguesa atrai indivíduos da capitania de Minas Gerais e portugueses da Ilha da Madeira e dos Açores. A região atraía igualmente posseiros que se instalavam na fronteira dos latifúndios. Cantagalo abriga a primeira colônia de imigrantes não portugueses. A encosta da serra da Boa Vista é desmembrada para dar origem ao município de Nova Friburgo e instalar colonos suíços, por ter o clima semelhante ao de seus cantões de origem facilitando a aclimatação.

O país atravessa dificuldades econômicas em razão do açúcar de beterraba introduzido no mercado mundial substituindo a cana-de-açúcar que exportava. Por outro lado, a produção algodoeira norte-americana conquista os mercados antes sob o controle do Brasil. Mas havia a esperança do café que os lavradores aumentavam paulatinamente a produção em razão do aumento da demanda no mercado internacional. Em meados do século 19 se tornará o principal produto de exportação no Império. Nativo da Etiópia, o café já vinha sendo plantado em pequena escala em Cantagalo. Mas para a lavoura em grande escala era necessário derrubar a floresta abrindo espaço para a implantação de culturas em campo aberto. Para derrubada da mata o português aprendeu com o índio o método da coivara. Trata-se de uma técnica de cultivo dos povos ameríndios caracterizada pela queima da mata, mas em pequena área, conhecida como agricultura de coivara. Porém os lavradores passaram a queimar grandes extensões da mata em seus latifúndios.

A mata atlântica abre espaço para a agricultura, Rugendas. Acervo Biblioteca Nacional
A mata atlântica abre espaço para a agricultura, Rugendas. Acervo Biblioteca Nacional

A queimada era uma tarefa perigosa e demandava técnica e conhecimento. Saber o momento oportuno exigia experiência, para que não fosse feita com muita ou pouca antecedência em relação às chuvas. Não poderia ser intensa demais para que não chamuscasse a camada rasa e fértil de humos, mas que não fosse tão superficial que não produzisse cinzas suficientes para neutralizar o solo ou que o deixasse ileso dos insetos. Nos meses frios de maio, junho e julho perto do fim da estação seca, camaradas eram contratados para a derrubada da mata. Com o machado em uma das mãos e o tição na outra, trabalhando de baixo para cima a partir da base da montanha, brandiam os machados sucessivamente contra cada árvore talhando-a até que o tronco, ainda inteiro, tremulasse com a iminência de sua queda. Os trabalhadores iam subindo, cortando um e depois outro tronco, cada vez mais acima, até que se chegasse ao cume da montanha. O capataz experiente decidia qual a árvore seria cortada até tombar arrastando consigo todas as outras. Se fosse bem sucedido, o sopé inteiro desabava com uma tremenda explosão levantando uma nuvem de fragmentos, de bandos de papagaios, de tucanos e de aves canoras. Os trabalhadores festejavam, pois se o capataz errasse e apenas umas poucas árvores caíssem teriam que descer entre as árvores cambaleantes e derrubá-las uma a uma. Nesta tarefa de abatê-las individualmente ocorriam geralmente muitos acidentes fatais.

O período de seca forma ilhas no rio Paraíba do Sul. Acervo pessoal
O período de seca forma ilhas no rio Paraíba do Sul. Acervo pessoal

Uma faixa de floresta, um hectare mais ou menos, era cortada e deixada secar. Por meio de machados retirava-se a casca dos troncos das árvores maiores. Um pouco antes da chegada das chuvas, todo o amontoado de árvores derrubadas era incendiado. A vegetação ressecada saltava em labaredas com rugido e espocar soando como disparos de espingarda. Subia um turbilhão de fumaça para o céu fazendo com que a enorme quantidade de nutrientes da biomassa caísse sobre a terra na forma de cinzas. O fogo ardia durante dias e fumegava por muitos outros. O vale do Paraíba parecia infernal ao final das estações secas, com centenas de incêndios nos latifúndios. As mais preciosas madeiras incineravam numa hecatombe da fauna e da flora devoradas pelas chamas. Chegavam, por fim, as chuvas, que adicionavam ao esterco gorduroso do humos e do solo os nutrientes liberados do rico leito das cinzas. As chuvas drenavam os nutrientes para o interior do solo, neutralizando-o e ao mesmo tempo fertilizando-o.

Contrariamente à cana-de-açúcar, amiga das várzeas, dos aluviões e das grandes planícies, na serra fluminense o café foi um inveterado escalador de morros. Os morros meias-laranjas estariam em pouco mais de meio século quase completamente cobertos por cafezais. Depois da retirada da mata fazendo uso da queimada, os escravos removiam o entulho e preparavam as covas para o plantio de arbustos de café. As mudas levam em média 5 anos para atingir a maturidade, quando então começam a produzir em escala comercial. A partir daí, sua capacidade produtiva se mantém por um período que varia entre 25 e 30 anos. As mudas eram plantadas em linhas retas, perpendiculares aos pés dos morros e dispostas em fileiras verticais com um espaço aproximado de dois a três metros entre cada uma delas. Esta forma de plantio era extremamente inadequada às condições climáticas da região, que é marcada pela presença de fortes chuvas torrenciais. Plantar pés de café de forma enfileirada no sentido vertical das encostas provocava erosão, tornando os solos improdutivos. Mas esta prática agrícola facilitava os feitores na sua tarefa de exercer melhor o controle do trabalho dos escravos.

Escravos na colheita do café. Acervo Instituto Moreira Sales
Escravos na colheita do café. Acervo Instituto Moreira Sales

Novas estradas, vendas, pousos, capelas e paróquias surgem graças as ondas verdes do café que seguem em marcha como soldados patriotas até o cume dos morros transformando a paisagem. A província fluminense salva o Brasil no Império do desastre econômico e Cantagalo tem um papel importante na agro exportação. Os fazendeiros fluminenses afidalgaram-se adquirindo títulos nobiliárquicos, integrando a nobreza da terra. A ideia da natureza inesgotável não deu margem para a adoção de qualquer tipo de cuidado com a sua preservação, já que podiam contar com novas terras com florestas primárias. À medida que os solos agrícolas se tornavam estéreis, a fronteira avançava em direção às florestas. Era mais cômodo abandonar os cafeeiros improdutivos e apropriar-se de novos terrenos. A ideia de uma terra sempre disponível para o avanço minimizava a importância do cuidado ambiental.

Rio Paraíba do Sul na época da estiagem. Acervo pessoal.
Rio Paraíba do Sul na época da estiagem. Acervo pessoal.

Sustentabilidade é a capacidade de se fazer uso dos recursos da natureza, sem comprometer a possibilidade das gerações futuras de continuar a utilizá-los. Não era esta a mentalidade dos lavradores quando iniciaram o cultivo de café na serra fluminense. Técnicas como a aragem e o plantio em curvas de nível para manter a fertilidade dos solos cultivados eram conhecidos naquela época. Por que então os lavradores de café não tiveram este cuidado? Uma das explicações para esta negligência pode estar relacionada à ideia da grande extensão dos latifúndios, com a possibilidade de ir plantando em novos terrenos quando o cultivado estivesse esgotado. Colheram sem nunca cessar, sem nunca indenizar à terra os frutos que dela retiravam. Tirar e nunca repor!

Em alguns morros de Cantagalo a mata vem sendo restabelecida. Acervo pessoal
Em alguns morros de Cantagalo a mata vem sendo restabelecida. Acervo pessoal

Uma das muitas funções da cobertura florestal é a de amortecimento e distribuição das águas das chuvas. Quando a floresta é retirada, o fluxo de escoamento da água é aumentado favorecendo o processo de erosão. A camada superficial dos solos das encostas onde se localiza o humos florestal, quando expostos diretamente à ação de chuvas mais intensas são arrancados e carregados morro abaixo. A erosão provocada por este processo acabava expondo as raízes dos cafezais e matando os arbustos. Outra consequência deste fenômeno era o acúmulo de sedimentos nas várzeas, que ocasionava o assoreamento dos rios e córregos. Mesmo sendo conhecido naquela época o plantio em curvas de nível, os fazendeiros optaram pelo cultivo predatório. A exaustão e a erosão dos solos fazia com que os produtores de café se vissem obrigados a abandonar suas plantações depois de 20 a 25 anos, já que os solos se tornavam pobres em nutrientes e os cafezais sem vitalidade.

A ideia de abundância de terrenos nos latifúndios fazia com que fossem considerados desnecessários quaisquer esforços no sentido de preservar os campos utilizados. Nesta lógica era mais lucrativo derrubar novas extensões de florestas primárias do que destinar tempo de trabalho para a recuperação ou preservação da fertilidade dos solos já utilizados na lavoura. Depois de abandonados, os terrenos ocupados pelos antigos cafezais eram tomados pela erosão ficando quase toda a área coberta por uma vegetação pobre de gramas, capins e samambaias. A técnica de sombreamento dos cafezais foi tratada naquela ocasião em artigos onde são ressaltadas as vantagens de se plantar as mudas de café ao abrigo de árvores maiores que lhes proporcionassem sombra. Sugestões como processos de adubação, que permitiriam um aproveitamento mais duradouro das áreas cultivadas foram igualmente apresentados. Logo, informação era o que não faltava. Muitas obras criticavam a “rotina” dos lavradores, que consumia os recursos do meio físico de forma não sustentável.

Vale do Muribeca, em São Sebastião do Alto. Acervo pessoal
Vale do Muribeca, em São Sebastião do Alto. Acervo pessoal

No último quartel do século 19 tem início a decadência da produção de café no vale do Paraíba fluminense. O esgotamento do solo, o surgimento de pragas nas lavouras acrescido à abolição da escravidão provocou a falência de inúmeros barões do café. Da opulência à ruína foram perdendo suas fazendas por dívida em leilões. Em aproximadamente oito décadas os cafezais substituiriam a Mata Atlântica em grande parte da região serrana fluminense, provocando as mais profundas e extensas mudanças ambientais. A antiga diversidade natural do ecossistema foi substituída por uma única espécie de planta, arbustos de milhares de cafeeiros, que tornou o ambiente muito mais vulnerável aos ataques de pragas e a adversidades climáticas alterando de modo intenso o ciclo hidrológico. A degradação do meio ambiente modificou o regime de chuvas alterando a sua regularidade e gerando períodos de seca, cuja duração levava até oito meses. As gerações futuras pagam um preço caro por essas práticas agrícolas predatórias. Atualmente o cenário ambiental da região serrana fluminense caracteriza-se por extensas áreas de pastagens com manchas isoladas de capoeiras.

Região serrana fluminense na estiagem. Acervo pessoal
Região serrana fluminense na estiagem. Acervo pessoal

A introdução da pecuária nas propriedades onde se plantava café aumenta a intensidade do desgaste dos solos nos morros. No lugar de arbustos de café, cascos de gado bovino entelham trilhas em forma de faixas em ziguezague. O resultado destas ações é o surgimento de voçorocas e outras formas de erosão que trazem à paisagem um aspecto de intensa degradação. O café mudou o regime hidrológico típico de uma floresta tropical pluvial para o de uma savana.  Nenhum traço da floresta primária restou na região serrana fluminense.

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Fontes: “Ouro, posseiros e fazendas de café. A ocupação e a degradação ambiental da região das Minas de Cantagallo na província do Rio de Janeiro”, de Mauro Leão Gomes e “A Ferro e Fogo” de Warren Dean. 


Janaína Botelho – Serra News

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