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Facínora ou mártir? O Quilombo de Carukango

No século 19, os fazendeiros do município de Cantagalo faziam uso de quatro vias para o transporte do café oriundos de suas unidades de produção. Entre estas vias, a que mais provocava receio era a estrada Cantagalo-Macaé em razão dos assaltos praticados pelos quilombolas do quilombo de Carukango. O início da construção da estrada Cantagalo-Macaé preocupou os vereadores de Nova Friburgo, já que iria diminuir o trânsito das tropas por este município prejudicando a sua economia. Mas na realidade isto não ocorreu por ser esta via tortuosa, muito íngreme e pelo terror provocado pelo quilombo de Carukango. Traficantes de escravos descarregavam tumbeiros no litoral macaense, de onde eram levados para as lavouras de café de Cantagalo e possivelmente traficados pelo primeiro Barão de Nova Friburgo. Em Macaé, quem deu início ao quilombo de Carukango foi o escravizado de mesmo nome. Nascido em Moçambique, Carukango fora príncipe na sua tribo pertencendo a realeza. Era um obá! Um príncipe com uma alma selvagem e um indomável guerreiro. Tudo indica que torna-se prisioneiro nas guerras tribais ficando cativo, uma prática comum desde a Antiguidade. Os traficantes de pessoas se valiam das escaramuças entre as tribos africanas para adquirir escravos e Carukango foi vendido a um navio negreiro do Brasil. Chegou ao município de Macaé desembarcando no porto de Imbetiba no início do século 19. Foi comprado pelo fazendeiro Antônio Pinto, família de imigrantes portugueses estabelecidos em Macaé.  Carukango sempre resistia ao trabalho compulsório e exercia liderança e respeito sobre os outros escravizados, principalmente porque era um feiticeiro. Sua forma de resistência foi a fuga e a formação de um quilombo. Considerada a maior comunidade quilombola da província fluminense, a primeira notícia do quilombo Carukango data do ano de 1819. Inicialmente o que se sabia desta comunidade quilombola era através do livro “Evocações, Crimes Célebres em Macaé” de Antão de Vasconcelos, cujo avô teria organizado a expedição para destruir o quilombo. Este memorialista teve a sua formação no Colégio São Vicente de Paula, em Nova Friburgo, localizado na casa sede da fazenda do Morro Queimado, onde hoje está instalado o colégio Anchieta. Quem atualmente se debruça na pesquisa sobre este quilombo é o historiador Marcelo Abreu Gomes. De acordo com o historiador as fontes primárias indicam a existência de um imenso quilombo na região fluminense cujo líder tinha como nome de batismo de Antônio Moçambique. Abreu Gomes pesquisou os Autos de Devassa da antiga delegacia de Macaé; os registros de óbitos dos escravos que combateram no quilombo; os Registros Paroquiais de Terras do século 19 de Macaé, Conceição de Macabu, Campos e Trajano de Morais localizando alguns personagens citados por Antão de Vasconcelos; faz uso da tradição oral e da obra acima citada do memorialista Antão de Vasconcelos. Nestes registros de terras localizou as pessoas que possuíram propriedades no lugar onde foi o quilombo. Carukango ganhou notoriedade alguns contos publicados em jornais no início do século 20. Na literatura foi romanceado por João Oscar no livro “Caru kango Rei” e a Fundação Zumbi dos Palmares de Campos editou o livro “Carukango, Príncipe dos Escravos”. Vou me valer na introdução deste artigo de um dos contos, adaptando-o, para que o leitor possa compreender a vida cotidiana de um escravizado no Brasil.

Jean-Baptiste Debret, 1835. Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo
Jean-Baptiste Debret, 1835. (Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo)

Bacalhau em punho, suarento feroz, o capataz da fazenda vergastava o preto velho amarrado a um moirão. E com que desenvoltura, com que selvagem energia o homem furibundo agitava no ar o terrível azorrague! Um pé na frente, outro atrás, corpo oscilando cadencioso, mangas arregaçadas, dois braços nus exibindo uma possante musculatura e acompanhando os vai-vens do corpo. As correias do azorrague cortavam o ar sibilando, indo enroscar-se flexíveis, causticantes e urentes como fogo ao corpo seminu do preto velho que já não gritava. Aquilo era o trabalho normal de um bom feitor; punha nele todo o seu talento, vigor e energia. O senhor Antônio Pinto observava o trabalho de uma janela do sobrado com certo orgulho, um prazer satânico que se traduzia num sorriso perverso. Alguns pretos ressabiados espiavam à distância, cheios de medo. Moleques como cães pelas moitas espiavam com olhos medrosos, ariscos. Aquilo era exatamente para que eles vissem o exemplo. A senhora da casa expiou da janela e vendo o estado miserável do pobre diabo sentiu um pouquinho de piedade e gritou – Chega gente! Mas o capataz fingiu não ouvir. Era necessário fazer uma exibição convincente de perversidade e mostrar ao senhor que não tinha pena de negro. Antônio Pinto espalmou a mão direita no ar e disse também. – Chega! O capataz deu ainda três lambadas vigorosas, atirou o bacalhau ao solo e desatou os laços que prendiam o preto velho ao moirão. Este derreou-se como uma pesada massa no terreiro. Perdera os sentidos. O corpo estava encaroçado e cheio de vergões. Pobre velho Tibúrcio! Deixando o terreiro o olhar do capataz se cruza com os olhos frios e taciturno do negro mal encarado que observava o castigo, Carukango!

Ilustração de um conto sobre Carukango. Acervo Biblioteca Nacional
Ilustração de um conto sobre Carukango. (Acervo Biblioteca Nacional)

Este conto retrata exatamente a vida cotidiana nas propriedades rurais no Brasil durante a escravidão. Saindo da literatura vamos ao relato do memorialista. Carukango era um negro baixo, atarracado, forte, meio corcunda e coxeava de uma perna. Toda gente temia aquele indivíduo macambuzio. Ao prestígio de príncipe ajuntou-se ao de feiticeiro e o obá era estimado e respeitado pelos escravizados. No seu entorno girava um mundo de superstições, crendices, ritos, deuses e demônios africanos. Não suportava a escravidão. Fugia do trabalho e aconselhava seus companheiros que fizessem o mesmo. Não era poupado pelo capataz em razão de sua atitude indomável de orgulhosa reserva. Vivia de tronco aos pés, sempre tomando o cruciante castigo do bacalhau no pelourinho ou na escada. Instrumento de castigo, o bacalhau era feito de couro seco, trançado e usado como chicote ou chibata para açoitar os escravizados faltosos. Mas Carukango não se dobrava, não era como os outros. O bacalhau, o tronco e o libambo que os senhores usavam para amansar, espezinhar e submeter os escravizados, nele apenas serviam para torná-lo mais rebelde.

Jean-Baptiste Debret, 1835. Acervo Biblioteca Nacional
Jean-Baptiste Debret, 1835. (Acervo Biblioteca Nacional)

Para se ver livre dos contínuos castigos fugiu e o seu paradeiro ficou desconhecido durante alguns anos. Surge a notícia de que o seu antigo senhor Antônio Pinto e toda a família foram encontrados degolados. Nada se apurou sobre os autores da carnificina. Continuaram os assaltos nas fazendas, assassinatos, roubo de escravos, animais, dinheiro, joias e relíquias sagradas. O procedimento era o mesmo. Levavam os escravos jovens e matavam os mais velhos para não deixar nenhuma testemunha viva. Os fazendeiros atemorizados começaram a abandonar suas propriedades e residir na vila de Macaé. Entre as freguesias das Neves e a do Frade, no lugar denominado Crubixais ou Crubichá, tinha estabelecido sua fazenda Francisco Pinto, irmão de Antônio, o assassinado. Chico Pinto como era conhecido tinha um pajem de inteira confiança, o moleque Domingos, e por amásia a mulata Josefa com quem vivia longos anos. O moleque tornou-se arteiro e tantas fez que Chico Pinto tão arreliado com as suas artes deu-lhe uma sova. O moleque fugiu. Passados alguns dias, pelas dez horas da noite, Chico Pinto despertou com batidas fortes na porta e indagou quem era. Era o moleque Domingos dizendo estar arrependido e vinha pedir perdão. A casa era de taipa e taboinhas com varas barreadas de sopapo, conhecida como pau-a-pique. Em razão das pancadas caíram alguns torrões de barro batido. Espiando pelo buraco produzido, Josefa reconheceu Carukango do lado de fora. Correu para buscar uma espingarda entregando-a a Chico Pinto para que atirasse. Este tremia de medo mas vendo que a porta estava prestes a ceder e apavorado com a ousadia da investida descarregou a arma acertando Carukango com uma carga de chumbo no peito e nos braços. Supondo que dentro da casa se achavam muitas pessoas armadas, retiraram-se. Mas antes Carukango gritou: “Eu volto cá meu branco e liquidaremos as contas”. Chico Pinto abandonou a fazenda e passou a residir na vila. A notícia do atentado correu de boca em boca, e todos os atos de banditismo ocorridos em Macaé foram atribuídos ao “facínora, ao eviscerado bandido negro” Carukango, como era descrito. Continuaram os ataques às fazendas da região e Carukango levava cada vez mais escravos para povoar o quilombo, fazendo-se senhor absoluto da região. As autoridades de Macaé solicitaram auxílio ao chefe militar da Capitania do Espírito Santo. Assumiu a expedição o coronel Antônio Coelho Antão de Vasconcelos que veio para o Brasil com D. João VI e trabalhou como chefe da Casa Militar. Uniram-se às milícias do Espírito Santo as de Campos, Macaé e Cabo Frio. Organizou-se uma expedição composta não somente com milicianos, mas igualmente com o auxílio de populares e da família Pinto, sedentos de vingança. A casa de Francisco Pinto foi transformada em quartel-general e diversas vedetas foram colocadas em pontos diferentes. Expressão pouco usada atualmente, chama-se de vedeta a sentinela ou à guarda situada em posição estratégica para defesa militar de um lugar. O coronel Antão usou de uma estratégia que funcionou perfeitamente. Monitorava a comunicação dos quilombolas com a vila, pois era frequente comerciarem com as tabernas da localidade. Conseguiu prender um deles que sob intensa tortura deu informações sobre a localização do quilombo e o número quilombolas. De acordo com o memorialista e neto do coronel Antônio Coelho Antão de Vasconcelos, o quilombo era situado em Serra Deserta, na divisa de Cachoeiros com Nova Friburgo, que ainda hoje é conhecida como Serra do Quilombo. Para o historiador Alberto Lamego era situado na Serra do Deitado, próximo às nascentes do rio do Deitado a nordeste de Macaé, confrontantes com os municípios de Trajano de Morais e de Conceição de Macabu. Já o memorialista Godofredo Tavares discorda pouca coisa de Lamego. Embora não possa indicar o ponto exato do quilombo afirma que o local das casas e das lavouras se situava em Conceição de Macabu, próximo à Serra do Deitado, ao lado do ribeirão Carocango, divisa de Conceição de Macabu com Trajano de Morais. Mas com a publicação da pesquisa do historiador Marcelo Abreu Gomes saberemos a localização exata.

Victor Frond. 1861. Acervo Coleção Brasiliana Itaú
Victor Frond. 1861. (Acervo Coleção Brasiliana Itaú)

Bem municiados e seguindo a rota indicada pelo quilombola, os expedicionários chegaram ao seu destino pela madrugada. O vigário João Resende da paróquia local relata que o ataque ao quilombo ocorreu nas margens do Rio Macabu, no dia 01 de abril de 1831, uma sexta-feira Santa. O quilombo ficava em um chapadão extenso com uma sucessão de chapadas, serros, bibocas, locas, ribeiros, boqueirões e bariris, oculto pela mata virgem circundante. Havia roças de milho, feijão, ervilhas e outros cultivos. No centro do mandiocal existia uma casa baixa e muito comprida com a frente para a entrada da mata e os fundos apoiados em três enormes matacões de granito que se erguiam a mais de 15 metros sobre a casa achaparrada. Sabia-se que no quilombo havia cerca de 200 homens, com poucas de mulheres e crianças. Estranhou-se tão pequena habitação para abrigar tanta gente. A casa foi cercada pelos milicianos que ficaram ocultos em diversas posições. O coronel Antão mandou que fossem espocados apenas alguns poucos tiros. Ouviu-se um toque de buzina que parecia sair por debaixo do chão e, logo a seguir, irrompeu cerrada fuzilaria de bala, chumbo e toda sorte de projéteis vindos da casa. O fogo foi respondido fracamente, de um outro ponto, consoante as ordens, para que acreditassem fosse pequena a força sitiante. Os quilombolas não conseguiam ver os milicianos escondidos na mata. Repentinamente se abriu a porta da casa. Optaram pela ofensiva e os quilombolas saíram atirando em todas as direções, protegidos pelos que estavam de cima dos matacões de granito. Estavam armados de foices, alfanjes, lanças e armas de fogo. Não sabendo que 400 milicianos cercavam a casa precipitaram-se num espetaculoso assalto. Foi quando os milicianos reagiram e cerraram fogo com uma descarga de centenas de espingardas surpreende-os no terreiro, matando muitos e ferindo alguns. Os que não foram atingidos recolheram-se em desordem e foram perseguidos pelos milicianos. Mas os quilombolas continuavam atirando do alto dos matacões embora a desvantagem fosse imensa. Na batalha soavam tiros de espingardas, pistolas, chuços, sabres e gritos de mata e esfola. As milícias melhor armadas e mais numerosas chacinaram todos os homens.

Victor Frond. 1861. Acervo Coleção Brasiliana Itaú
Victor Frond. 1861. (Acervo Coleção Brasiliana Itaú)

Assenhoreando-se da casa aprisionaram todos quantos nela estavam. Nenhum homem foi poupado e deixado com vida. Demolida a construção, ficou à vista uma grande abertura de vasto subterrâneo, gruta natural onde residiam os quilombolas. Isto esclarece o misterioso toque da buzina que vinha das entranhas da terra. Estava explicada a astúcia e a engenhosidade dos quilombolas. Se tivesse no local pequenas cabanas levantaria suspeita de ser uma comunidade de escravos fugitivos. Com apenas uma única habitação e dormindo todos na gruta não levantavam desconfiança. Os que estavam dentro dela foram intimados a renderem-se. Só anuíram depois que se fizeram para dentro da gruta duas descargas de espingardas. Capitulados, saiu na frente Carukango silencioso e solene. Vestia um hábito sacerdotal trazendo ao peito um rico crucifixo de ouro. Fez-se silêncio ante o célebre babalorixá, misto de alufá, pajé e sacerdote católico. Curiosamente de acordo com o memorialista, os milicianos tiraram os chapéus reverentes e abaixaram as armas para ele apontadas. Carukango parou, olhou para todos os lados e dirigiu-se a passos lentos para onde estavam os indivíduos mais importantes da expedição. Aproximou-se do filho de Antônio Pinto, por ele assassinado, e que escapara da matança por estar fora de casa nesse dia. De repente, ergueu o braço direito que trazia oculto sob a capa sacerdotal e armado de uma pistola de dois canos desfechou dois tiros sobre o rapaz, matando-o instantaneamente. Os milicianos precipitaram-se sobre Carukango, arrancaram-lhe as vestes e a imagem sagrada. Amarraram-no sobre um tronco de uma árvore e o decapitaram com as costas de duas foices que compassadamente lhe batiam no pescoço. A gruta foi devassada e mataram todos os que ali se encontravam, com exceção das mulheres que foram poupadas.

Pintura Paul Harro-Harring. 1840. Acervo Instituto Moreira Sales
Pintura Paul Harro-Harring. 1840. (Acervo Instituto Moreira Sales)

Inquiridas sobre a vida no quilombo soube-se que o Carukango era dele o Imperador e o Papa. Tinha serralho de todas as pretas moças. Aquelas que ficavam grávidas eram repudiadas e entregues aos outros homens.  Logo que davam à luz, a criança era morta e queimada: “A nossa raça, dizia Carukango, deve extinguir-se para não ficar na mão do branco.” Segundo elas foram levadas para o quilombo à força da casa dos seus senhores. Voltaram aos donos com ordens para que não fossem maltratadas. Os quilombolas degolados tiveram as suas cabeças espetadas em estacas e colocadas à margem da estrada geral para servirem de exemplo aos outros escravizados. A cabeça do Carukango foi colocada na encruzilhada do Zé Bento, hoje conhecida por Chico Martins, ponto onde se reuniam a três estradas do Frade, Macaé e do Furambongo. Carukango foi um facínora ou um mártir? A população nas imediações do quilombo respondeu a esta problemática julgando-o como um mártir e tecendo preito a sua memória. Carukango foi homenageado no município de Macaé com o nome de uma rua e em Conceição de Macabu com nome de uma localidade, um rio, uma fazenda e uma serra.


Fontes: Entrevista com o historiador Marcelo Abreu Gomes; Artigo “Macaé à Luz de Documentos Inéditos” de Alberto Lamego. Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro, n°: 11. P.97 – 1958; A Noite, 09 de novembro de 1937; Correio da Noite, 03 de março de 1915; Suplemento de A Notícia, “Carukango, dos crimes célebres em Macaé”; “Imagens de nossa Terra”, de Godofredo Guimarães Tavares.

Janaína Botelho – Serra News

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