Langsdorff e a Fazenda da Mandioca: bicentenário da imigração alemã no Brasil
Neste ano em que se comemora oficialmente o bicentenário da colonização alemã no Brasil, um episódio bem interessante da história da presença germânica permanece praticamente ignorada: a existência de uma pioneira colônia agrícola alemã, na região de Magé (RJ), antigo território Tupi, na década de 1820. Trata-se da colônia alemã da Fazenda Mandioca, de propriedade do barão Georg von Langsdorff (1774-1852). Essa colônia, durante sua existência (1822-1826), manteve ainda relações com a então recém-fundada colônia suíça de Nova Friburgo. Mas quem foi o barão Langsdorff? E quem foram os colonos?
Georg Heinrich von Langsdorff, cientista e diplomata, alemão, conheceu o Brasil já em 1803, quando, integrante de uma expedição naval, esteve na Ilha de Santa Catarina (na atual Florianópolis, SC). Tornou-se cônsul da Rússia no Rio de Janeiro, em 1813, durante o período Joanino, quando o príncipe e depois rei Dom João VI (1767-1826) permaneceu na América portuguesa, após a invasão napoleônica de Portugal em 1807. Apaixonado pelas terras brasileiras, Langsdorff comprou ao sargento-mor Joaquim Oliveira Malta e sua esposa Marina Ludovina Freire, em 28 de setembro de 1816, a Fazenda Mandioca, de 28 quilômetros quadrados, por 3 contos e seiscentos mil réis (cerca de 450 mil reais atuais). Era uma propriedade situada no município de Magé, próxima ao Porto do Estrela e da serra de mesmo nome, na região de Inhomirim, entre a Baía de Guanabara e a Serra dos Órgãos, remontando à sesmaria de um certo Francisco de Mattos Filgueiras, no século XVII. O cônsul instalou na propriedade – que também comportou certo numero de negros escravizados – um horto botânico, e atraiu para o local personalidades como o naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), o pintor austríaco Thomas Ender (1793-1875), o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), o naturalista alemão Johann Baptist Spix (1781-1826) e até os príncipes Dom Pedro de Bragança (1798-1834) e Maria Leopoldina de Habsburgo (1797-1826), futuros imperantes do Brasil. Na fazenda, cultivava-se batata, milho, mandioca, café, entre outros gêneros.
Desejando criar um estabelecimento agrário com modernas técnicas, e com uso predominante de trabalho livre, Langsdorff fundou efetivamente em março de 1822 uma colônia agrícola na sua Fazenda da Mandioca. Para isso, após forte propaganda na Europa no ano anterior, conseguiu constituir um grupo de cerca de 85 pessoas, sobretudo artesãos, como marceneiros, pedreiros, mas também um empresário do ramo da fabricação do sabão. Eram alemães, muitos deles provenientes da cidade de Lahr, da mesma região de Langsdorff (e, vale lembrar, a Alemanha não era uma nação unificada, sendo dividida em vários reinos e outras entidades políticas). Precisamente, a história da colônia da Mandioca foi resgatada a partir de Wolfgang G. Müller, que foi prefeito de Lahr (de 1997 a 2019): após visitar Nova Friburgo e o local da antiga Fazenda Mandioca, em Magé, ele incentivou e financiou uma pesquisa sobre o destino dos colonos alemães depois da chegada deles para o Brasil. Dentre as famílias que acompanharam Langsdorff ao Brasil, constam sobrenomes como os de Koch, Müller, Ludihuser, Freytag e Santo. O barão visava, além da agricultura propriamente dita, estimular atividades produtivas inexistentes ou embrionárias no Brasil da época. Bem relacionado, o nobre obteve o apoio de José Bonifácio Andrada e Silva (1763-1838), então Ministro do Reino e muito próximo ao Príncipe Regente Dom Pedro.
Langsdorff e os colonos alemães por ele recrutados chegaram ao porto do Rio de Janeiro, na época capital do Reino do Brasil, em 5 de março de 1822, a bordo do navio Doris, após uma viagem sem grandes percalços, e também sem vítimas – houve inclusive o nascimento de um bebê. Uma vez instalados na Fazenda da Mandioca, porém, começaram a surgir sérios problemas. A ideia de Langsdorff era montar uma colônia agrícola, na qual os trabalhadores trabalhariam para ele, em troca de um pagamento, com o qual poderiam obter futuramente o acesso à propriedades agrícolas. Ocorre que a expectativa dos colonos era bem diversa: acreditavam poder ter acesso imediato à terra. Esse mal-entendido aumentou, e segundo Friedrich von Weech (1784-1837), um oficial alemão natural de Munique que foi depois para a Mandioca, faltava habilidade também em Langsdorff, sendo ele um cientista, muito mais do que administrador.
Como resultado do desentendimento, logo se instalou um clima de revolta entre os colonos, e o barão chegou a pedir apoio a José Bonifácio, em junho de 1822. Por sua vez, muitos colonos, insatisfeitos, deixaram a fazenda. Houve uma verdadeira dispersão: enquanto alguns foram para o Rio de Janeiro, outros partiram para outras regiões da Capitania, e outros ainda optaram por voltar a Europa. Houve, ainda, alguns que foram para a vila de Nova Friburgo, colônia suíça fundada em terras integrantes do município de Cantagalo até 1820: o militar prussiano Heinrich August Bastide (1790-1873) chegou a ser nomeado piloto agrimensor da câmara municipal de Friburgo, retornando posteriormente à Alemanha. Por sua vez, alguns friburguenses se fixaram na Mandioca, provavelmente atraídos pela propaganda do barão, que visitara Friburgo em busca de mais colonos. O estudo sobre o paradeiro dos colonos revela uma grande diversidade de escolhas e de destinos.
Com base em extensa pesquisa de arquivos (sites de genealogia, registros paroquiais e de estado civil, cartas de Langsdorff, jornais antigos), e em instituições como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Histórico do Itamaraty, além do precioso apoio de alguns trabalhos historiográficos (sobretudo de Hans Becher) foi possível observar a trajetória de vários colonos e de suas famílias. Alguns permaneceram no Brasil, criando aqui fortes raízes: foi o caso dos Freytag e dos Koch. A família Freytag fincou raízes na região de Magé de Petrópolis: o guarda-livros Ludwig Freytag (cerca de 1797-1884) chegou a integrar a colônia alemã de Petrópolis, em 1843, e um morro em Magé hoje leva o nome Freytag. Já os Koch, inicialmente atuando no ramo da marcenaria, se estabeleceram na região de Campos dos Goitacazes. Os Santo, após uma estadia no Uruguai, terminaram por se estabelecer na Argentina, trabalhando na agricultura. Os Chaboudez, suíços friburguenses, assim como os Murat, chegaram a ter um de seus membros nascido na Mandioca em 1825, mas depois do fim da experiência da colônia agrícola, retornaram à Friburgo.
Apesar dos esforços e da chegada de novos colonos, a fazenda não prosperou. A profunda insatisfação dos colonos – decorrente do desencontro entre suas aspirações e as condições reais de trabalho encontradas – foi destacada por Débora Bendocchi Alves. Langsdorff, por outro lado, iniciou em 1824 sua famosa expedição cientifica pelo interior do Brasil. Enfim, havia o turbulento contexto político dos anos de formação da Independência brasileira. Em 1826, a Mandioca foi vendida ao governo, e o barão prosseguiu com sua expedição. Com a saúde mental debilitada devido aos duros percalços enfrentados pela expedição, retornou à Europa em 1829, falecendo na Alemanha.,Nas terras da Mandioca foi instalada uma fábrica de pólvora e hoje ainda há trechos de uso militar (no ramo do material bélico), com algumas instalações da fazenda ainda de pé, constituindo inclusive local de moradia, em Magé.
Ao final, a experiência da Mandioca, apesar de tudo, não foi em vão: deixou um importante legado no sentido de representar uma das primeiras experiências de trabalho coletivo rural com base no trabalho livre, numa época em que a sociedade brasileira continuava fortemente marcada pela escravidão e também – como ainda hoje – pelo latifúndio. Além disso, se constituiu numa das primeiras experiências de imigração alemã no Brasil, dois anos antes da chegada dos alemães na Vila de Nova Friburgo e na colônia de São Leopoldo (RS), em 1824. E, ainda, cerca de 25 anos antes da imigração suíço-germânica na região de Limeira e Rio Claro (SP), na famosa experiência do senador Vergueiro, conforme lembrado por Débora Bendocchi Alves. Não resta dúvida, assim, de que o pioneirismo da Fazenda da Mandioca merece ser mais lembrado e valorizado.
Pesquisa de Inoã Pierre Carvalho Urbinati, doutor em história pela UERJ, genealogista e carioca de raízes franco-samarinesas. Contato: [email protected].