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Nega Lonira: a estranha história de escravidão nas Minas Gerais

Lonira, conhecida como Nega Lonira, nunca soube a sua idade. Dizia ser moça feita quando ouviu falar em Getúlio Vargas, na Revolução de 1930. Separada da mãe ao nascer viveu como escravizada até a sua adolescência na fazenda Soledade, em Minas Gerais. Na casa de vivenda, entre a infância e a juventude transitava do terreiro para a cozinha, da cozinha para o terreiro. Raramente via seus patrões e seu contato se restringia às criadas da cozinha, Honorina e Juliana. Lonira era bela, olhos vivos e alegres, sorriso bonito e sinhá quase a colocou como babá dos netos, mas lugar de negra bonita é na cozinha.

No terreiro havia um cubículo onde as criadas dormiam, próximas ao fogão a lenha onde se preparava tachadas de doce. Trabalhava desde às 5h da manhã até ser autorizada a se recolher. Bem distante da casa de vivenda viviam os empregados da roça e os colonos, os casados separados dos solteiros. Se uma criada solteira engravidasse, após o parto era expulsa e a criança entregue a velha criada preta Honorina ou a pessoas amigas para fazer serviços domésticos, a partir dos 6 anos de idade. As crianças entregues pela patroa a Honorina eram tidas como escravas. Possivelmente foi o destino da mãe de Lonira, mas Honorina jamais quis falar sobre o assunto. Lonira obedecia a tudo e a todos sem tugir nem mugir e o seu isolamento do mundo extramuros permitiu que acreditasse ser escrava.

O seu contato mais próximo e afetivo era com Honorina, mulher rude no trato, que falava pouco e sempre entregue ao trabalho. Perdera o gosto pela vida desde a morte do companheiro. Criou Lonira como filha dando-lhe amor à sua maneira. A outra criada Juliana também crescera na fazenda e apesar de ter problemas mentais fazia bem o seu serviço. Na hora das refeições Lonira arrumava as terrinas e travessas e passava para Juliana, que ocupava um grau superior entre os criados na hierarquia da casa. Juliana ficava mais na copa onde Lonira não podia circular. Juliana atendia às mucamas Etelvina e Joana, que serviam as refeições na sala. Por sua vez recebia instruções das mucamas e repassava a Honorina. Era este o costume da casa.

As criadas da cozinha andavam sempre descalças, vestiam saias de chita, blusa e lenço branco na cabeça. Já as mucamas, que raramente entravam na cozinha vestiam saia de merinó estampado, blusa branca e torso colorido na cabeça. Em dias de festa usavam brincos, colares e saia preta de tafetá. Cuidavam dos salões e quartos, da rouparia e atendiam pessoalmente a sinhá e suas filhas. O elo de ligação entre todas era Maria, criada de confiança de sinhá e no topo da hierarquia. Maria distribuía as tarefas e fiscalizava tudo. A senhora da casa tinha orgulho desta organização na Soledade e na granja, outra propriedade da família em Juiz de Fora.

Nega Lonira: a estranha história de escravidão nas Minas Gerais
Foto ilustrativa, autoria Alberto Henschel. Acervo IMS

A casa de vivenda da Soledade tinha 14 quartos, 4 salões de festa, 3 salas de jantar, saletas, copa, varandas, banheiros, lavoura de café, imensos jardins, pomar e horta. Lembrando que as casas não tinham banheiro no século 19 tendo sido acrescentado depois. Os hóspedes eram numerosos e havia sempre movimento de visitas na casa. Mas ocorreu uma fatalidade, a morte súbita do senhor da casa quando estava em viagem. Quando chegou a funesta notícia na Soledade, as mucamas corriam de um lado para outro socorrendo sinhá, em crise de nervos. Era um Deus nos acuda. Muita gente ia chegar na casa para saber do ocorrido e consolar sinhá. Honorina mandou Lonira matar frangos e socar café pois a noite seria longa, com muita gente chegando e saindo e haja comida para alimentar todo mundo.

Sinhá partiu assim que amanheceu com amigos e parentes ao encontro do marido defunto. Ficaram duas mucamas que se recolheram aos seus aposentos. A casa depois de intensa movimentação de entra e sai ficou vazia. Nega Lonira aproveitou a oportunidade e pela primeira vez entrou na copa. Ali viu o mobiliário com armários altos contendo prataria e louças finas. Seguiu em direção a sala olhando espantada os lustres, as cortinas, poltronas e tapetes. O que mais a surpreendeu foram as banheiras de louça nos banheiros e sabonetes que cheiravam, revirando-os nas mãos e lambendo-os. Circulou pela varanda, passou pelo jardim na frente da casa seguindo até um riacho, deslumbrada com tudo que via na Soledade, lugar onde cresceu, mas que nunca teve acesso.

A Velha Honorina faleceu três semanas depois do patrão e a família vendeu a fazenda. Sinhá partiu com as mucamas Maria e Etelvina e Lonira e Joana seguiram com malas, baús e caixotes em carros de boi. O destino era a granja em Juiz de Fora, na outra propriedade da família. A viagem foi uma aventura. As rodas dos carros de boi “cantando” na estrada, chiando nas subidas, derrapando nas descidas e os carreiros gritando durante todo o trajeto. Os carreiros rodeavam e se engraçavam com Lonira e Joana a advertiu: “Se cuida Lonira, que se tu apanha fio, tá na rua da amargura. Sinhá num gosta de nega prenhe.” Após algumas semanas de viagem lá estavam Lonira e Joana na estação de trem vendo pela primeira vez uma locomotiva.

“Sinhá num gosta de nega prenhe”. Imagem internet.
“Sinhá num gosta de nega prenhe”. Imagem internet.

A viagem de trem foi longa, cansativa, Lonira e Joana com fome e sede espremidas no vagão de carga entre malas, baús, jacás, galinhas, porcos e carvão. Na estação de Juiz de Fora um homem as esperava e levou-as a pé até a granja. Ali como em Soledade sua circulação era restrita a cozinha. Na granja ela tinha mais trabalho do que na fazenda porque sinhá vendia queijo, geleia, doce de marmelo, goiaba e pêssego. No país ocorria a Revolução de 30, e no Estado de Minas Gerais havia muita agitação. No entanto, Lonira ainda achava que era escravizada. Certo dia, uma galinha carijó fugiu e Lonira foi atrás transpassando o portão da granja e alcançando a rua por onde passara apenas no dia de sua chegada. Ficou admirando a localidade, quando foi abordada por uma senhora que estranhou de nunca a ter visto antes na granja.

Era um domingo e a senhora perguntou por que não ia a missa como os demais da casa? Lonira respondeu “Sinhá não deixa. Sô escrava”. A senhora esclareceu que a escravidão terminara há muitos anos e se impressionou que a mocinha não soubesse. Apiedando-se com a sua situação de cativeiro, estimulou-a a fugir e abrigou-a em sua casa por determinado tempo. Em seguida, arranjou uma colocação para Lonira na residência de um juiz de direito e sinhá não teve como contestar. Lonira foi alfabetizada pela nova patroa, recebia um salário e casou-se com o pedreiro Raimundo com quem teve 4 filhas. Mas por quê Honorina que a criou como mãe nunca lhe disse que não era escrava? Honorina vivia contando histórias de negras perdidas nas estradas, barrigudas, famintas e sem teto. Talvez temesse que Lonira virasse uma mulher perdida pelas estradas como tantas outras se soubesse que era livre. Na Soledade ela tinha sua proteção.

Esta história foi contada por Lonira quando trabalhou em Niterói (RJ) como doméstica na residência da família de Hilda Faria, professora e diretora da Faculdade de Educação da UFF e transcrita no livro “Nêga Lonira”. Hilda Faria nasceu em Nova Friburgo em 16 de agosto de 1920. De acordo com a narrativa, Lonira nasceu aproximadamente entre 1916 e 1917. Honorina era filha de pais escravizados. Liberta sofreu muito “pelas estradas” com seu companheiro após a abolição da escravidão. A fome, a penúria e doenças levou o seu companheiro a morte e Honorina terminou trabalhando na fazenda de uma irmã de sinhá, depois para a mesma. Estas histórias de vida demonstram o abandono por parte do governo de ex-escravizados após o fim do cativeiro, sem reintegrá-los a sociedade.


Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora

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