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Uma viagem de trem a Nova Friburgo: o passado manda lembranças

No Rio de Janeiro, na estação marítima no largo da Prainha (atual praça Mauá) era onde um passageiro com destino a Nova Friburgo comprava um bilhete da barca a vapor. Diariamente, bem cedo pela manhã, saía uma barca com horário em correspondência com o trem expresso que partia da estação de Sant’Anna do Maruí, em Niterói rumo a Cantagalo, passando pela cidade serrana de Nova Friburgo. A viagem na barca que atravessava a baía da Guanabara era deslumbrante. Sentia-se o ar impregnado de perfumada maresia que deixava para trás os cabeços dos montes e as torres das igrejas do Rio de Janeiro. Avistava-se o arsenal da Marinha, navios de guerra e mercantes bem como vapores atracados nos trapiches. Passava-se pela ilha das Cobras, a ilha das Enxadas (Escola Naval) e pela grandiosa ilha Fiscal. Aproximando-se de Niterói se avistava os contornos da Serra dos Órgãos passando pelas ilhas Mocanguê, Grande, Mocanguê pequeno, Do Viana, Conceição, entre outras. A travessia da baía da Guanabara durava aproximadamente 45 minutos. Chegando a estação de Sant’Anna do Maruí, o embarque de passageiros, bagagens e correio nos vagões da locomotiva levava algum tempo, favorecendo os ambulantes com bandejas de pães, doces e frutas, assim como os vendedores de jornais e de bilhetes de loteria, apregoados com grande alarido.

Estação marítima no largo da Prainha, atual praça Mauá. Acervo Márcio Gonçalves.jpg
Estação marítima no largo da Prainha, atual praça Mauá. Acervo Márcio Gonçalves.jpg

Partia a locomotiva lançando rolos de fumo pelo ar passando pelas estações de Porto da Madama, São Gonçalo, Alcântara, Guaxindiba, Itambi e Porto das Caixas onde fazia a primeira parada. Neste trajeto, no início do século 20, a paisagem era de uma vegetação raquítica que se arrastava por uma zona estéril e alagadiça. A planície era coberta de pantanais medonhos que provocavam a febre amarela assolando os povoados da região. Avistavam-se decadentes arraiais e velhas fazendolas na solidão daquelas paragens desertas. Na estação de Porto das Caixas, a 34 km de Sant’Anna do Maruí, uma parada providencial para a primeira refeição do dia. Poder-se-ia adquirir dos ambulantes cambucá, laranja, tangerina, lima, limão doce, jabuticabas, fruta do conde, abacaxi, melancia, sapoti, abacate, roletes de cana e as apreciadas orquídeas. No botequim da estação era oferecido café acompanhado de bolo de arroz ou de milho. Para a viagem alguns levavam merenda de casa como uma cesta com frangos assados e uma lata com pastéis. Partindo desta estação atravessava-se um pequeno túnel, passava-se por pontes, pontilhões e pelas estações de Sambaetiba e Sapucaia onde o expresso não parava. Chegando a estação de Santana de Japuiba, uma parada rápida onde os passageiros podiam comprar doces e o expresso seguia rumo a Cachoeiras de Macacu, na raiz da serra, margeando o rio Macacu.

De Niterói a Nova Friburgo, 4 horas de viagem. Acervo F. D. João VI
De Niterói a Nova Friburgo, 4 horas de viagem. Acervo F. D. João VI

Em Cachoeiras de Macacu mais uma parada para o lanche onde se encontrava no botequim café, pão de ló, beijus e as afamadas bananas. Meninos cercavam o trem vendendo banana ouro em meio a uma gritaria infernal. Nesta estação, fazia-se a mudança da locomotiva para outra apropriada à subida da serra. Seguia a locomotiva passando logo depois da saída da estação por uma ponte sobre o rio Macacu chegando à estação da Boca do Mato, onde o expresso ficava por pouco tempo. A temperatura já se alterava sentindo os passageiros o ar bem mais fresco. Desta estação é que realmente a locomotiva, aos arrancos, começava a subir a longa e majestosa serra de Nova Friburgo, com 13 km de extensão. Esta serra apresenta uma das mais fortes rampas ferroviárias existentes no mundo. De vez em quando, a máquina perdia a força e o foguista botava carvão na fornalha e o maquinista fustigava o cavalo de ferro que avançava e contorcia-se soltando gemidos estridentes ao cavalgar. Os vagões balançavam muito e alguns diziam “qual carroça vazia”, na subida da serra. A conversação intensa e palradora dos passageiros somente cessava para contemplarem absortos a paisagem esplêndida, feérica e grandiosa da densa mata com árvores gigantescas. Ouvia-se o sussurro longo e monótono das cachoeiras, cujos ecos uniam-se ao ruído áspero da locomotiva num dueto bizarro. Devido a densa neblina, em dado momento tinha-se a impressão de que a locomotiva seguia para o céu, na confusa expressão de suas névoas. Cessada a cerração, uma belíssima paisagem se descortinava na fresca e suave aragem da mata.

A serra de Friburgo é uma das mais fortes rampas ferroviárias existentes no mundo. Acervo RFFSA
A serra de Friburgo é uma das mais fortes rampas ferroviárias existentes no mundo. Acervo RFFSA

Desde o alto da serra que tudo é cantante: os pássaros, as cachoeiras do rio Macacu que se atiram pelo declive e o ruído das tropas de mulas transportando os produtos das roças dos agricultores à margem da estrada. A locomotiva serpenteava animada pelo vapor de suas máquinas possantes, e sob uma chuva de carvão em fogo a cair sobre o comboio. Os homens geralmente usavam guarda-pó e alguns ainda portavam na cabeça um lenço com nó nas quatro pontas para se protegerem de fagulhas de carvão, algumas acesas, que entravam nos vagões. Passando por entre altas montanhas cobertas pela mata e o rio Macacu que corria encachoeirado, chegava-se ao Posto do Penna, no meio da serra, a 586 metros acima do nível do mar. A seguir alcançava-se o Posto do Registro numa altitude de 732 metros e uma pequena parada para a máquina da locomotiva ser abastecida com água. Os passageiros aproveitavam para se refrescarem bebendo a água que jorrava de uma fonte artificial. Em certo ponto, a 1.009 metros acima do nível do mar, avistava-se ao longe, bem longe, confundindo-se com as nuvens, a azulada baía da Guanabara qual lago sereno. Do Posto do Registro seguia-se até a Estação de Theodoro de Oliveira, para mudar de novo a locomotiva.

Posto do Registro e a fonte onde os passageiros bebiam água. Acervo RFFSA
Posto do Registro e a fonte onde os passageiros bebiam água. Acervo RFFSA

Cessados os solavancos, a locomotiva descia suavemente o vale acompanhada desta vez pelo rio Santo Antônio. Passava-se pela estação de Mury, sem fazer uma parada. Esta estação servia para transportar os produtos da lavoura dos agricultores de Lumiar. Havia o trem misto e o de passeio. O primeiro transportava passageiros e cargas e o segundo apenas passageiros. Faltando um quilômetro para chegar à estação da cidade, o cavalo de ferro apitava anunciando estrepitosamente a sua chegada. Depois de ter feito um percurso de 109 km partindo de Niterói, em aproximadamente 4 horas, chegava-se a Nova Friburgo. Quando a locomotiva se aproximava da estação, alguns meninos costumavam ficar sobre os trilhos rodopiando e exibindo-se. O maquinista apavorado apitava e os “capetas” saltavam apenas no último instante. Alguns mais audaciosos subiam nos vagões ainda em movimento, um pouco antes da estação, para garantir o compromisso do passageiro de transportar a sua bagagem. Após o desembarque em Nova Friburgo, o trem seguia para Cantagalo. A cada chegada da locomotiva, friburguenses curiosos corriam pressurosos para a estação observar quem chegava na cidade. Na viagem de trem a Nova Friburgo, o passado manda lembranças.

Estação de trem do século 19 e substituída em 1935 por um novo prédio(PMNF). Acervo F. D. João VI
Estação de trem do século 19 e substituída em 1935 por um novo prédio(PMNF). Acervo F. D. João VI

Fonte: Este artigo foi baseado em variados relatos e impressões da viagem de trem a Nova Friburgo.

Janaína Botelho: roteirista, historiadora e professora

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Janaína Botelho – Serra News

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