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Tenório Cavalcanti no crime que abalou Nova Friburgo

Matou o patrão para não ser estrangulado. Esta foi a manchete sensacionalista de uma reportagem publicada no jornal Luta Democrática, em 21 de julho de 1954. Trata-se da matéria sobre um crime que repercutiu muito entre a população de Nova Friburgo, em meados do século vinte. Procurei extrair da matéria tão somente a motivação e a dinâmica do crime, em razão do jornal ser tendencioso por pertencer a Tenório Cavalcanti, advogado de defesa do réu. Boa parte dos friburguenses viveu no dia 19 de julho de 1954, uma intensa expectativa do julgamento pelo tribunal do júri do operário da fábrica Rendas Arp José Alves Pinheiro, acusado do homicídio de Henrique Frederico Fernando Witte, gerente desta indústria de tecelagem.

O caso apaixonou os friburguenses e não tardou que dividisse a opinião pública em virtude do intenso sensacionalismo que se revestiu o julgamento, possivelmente o mais importante da história forense de Nova Friburgo. O povo, na sua quase totalidade ficou ao lado do réu, enquanto certa parcela de empregadores colocou-se ao lado da vítima, nos informa o jornal Luta Democrática. Além da importância deste crime nele iriam se enfrentar dois importantes advogados do mundo jurídico, o notório jurista Evandro Lins e Silva e o folclórico deputado Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, conhecido como o “homem da capa preta”, que portava quase sempre uma metralhadora apelidada por ele carinhosamente de “lurdinha”. Os friburguense interromperam suas atividades para acompanhar o julgamento e muitos estabelecimentos comerciais não abriram no dia do júri.

Tenório Cavalcanti andava quase sempre acompanhado de sua metralhadora a mostra. Acervo internet
Tenório Cavalcanti andava quase sempre acompanhado de sua metralhadora a mostra. Acervo internet

Não obstante o jornal Luta Democrática relatar o crime da maneira que lhe convinha, ao menos nos traz a cronologia dos fatos até culminar com o homicídio. Os jornais locais que poderiam trazer também a cobertura do acontecimento, infelizmente não estão disponibilizados no site de Fundação D. João VI. Realizei uma consulta no “Cadernos da Comunicação, Série Memória. Um jornalismo sob o signo da política” para traçar um perfil de Tenório Cavalcanti. Nascido em 27 de setembro de 1906 no sertão alagoano veio para o Estado do Rio de Janeiro se instalando no município de Duque de Caxias. Iniciou sua trajetória política destacando-se em litígios travados por grupos de fazendeiros e pequenos agricultores, envolvendo-se em guerrilhas urbanas armadas pela posse de terras em seu reduto. Com linguagem simples e direta fazia discursos demagógicos, exaltados, abusando de simbologias, contando histórias e desafiando de forma pessoal os adversários. Na Baixada Fluminense andava sempre acompanhado de capangas fortemente armados.

Tenório Cavalcanti formou-se em Direito aos 40 anos. Foi eleito deputado estadual em 1947 pela UDN e deputado federal nos mandatos de 1950, 1954, 1958 e 1962. Em 3 de fevereiro de 1954 criou o jornal Luta Democrática, que o colocava sempre como um político em favor dos mais fracos e oprimidos e tinha como slogan a frase: “Um jornal de luta feito por homens que lutam pelos que não podem lutar”. O Luta Democrática serviu igualmente para atacar o seu principal inimigo, Getúlio Vargas. O jornal não tinha peso como formador de opinião entre as elites, mas suas manchetes e a forma irreverente de transmitir a informação cativava o leitor. A trajetória política de Tenório Cavalcanti foi interrompida pelo regime da ditadura militar, que cassou seus direitos políticos em 1964.

Tenório Cavalcanti usou um crime em Friburgo como palanque para sua reeleição. Acervo internet
Tenório Cavalcanti usou um crime em Friburgo como palanque para sua reeleição. Acervo internet

Tenório Cavalcanti colocava-se como o justiceiro que punia os malvados e defendia os humildes. Logo, o caso do crime de um operário contra um executivo de uma indústria serviu de palanque para Tenório Cavalcanti e de matéria-prima para o seu recém-criado jornal. Na ocasião se candidatava a reeleição como deputado federal. Quase ao meio-dia o movimento na praça Getúlio Vargas onde ficava o Forum era intenso. A multidão guardava lugar naquele logradouro público pois corria a notícia de que o julgamento seria transmitido pela rádio local e que alto-falantes seriam instalados nas imediações do Forum. Era muito comum à época esta prática em acontecimentos importantes pois nem todos possuíam aparelho de rádio. Houve algum problema e do lado de fora a turba reclamava a ausência dos prometidos alto-falantes. Foi então que Tenório Cavalcanti com a ajuda de técnicos da cidade mandou fazer a instalação de alto-falantes na camionete de seu jornal. Quando abriu-se as 14h a porta do tribunal do júri, as pessoas entraram aos empurrões lotando e se comprimindo no salão.

Antigo Forum de Nova Friburgo onde ocorreu o julgamento. Acervo FGV
Antigo Forum de Nova Friburgo onde ocorreu o julgamento. Acervo FGV

No dia 18 de novembro de 1952, as 10:30h da manhã, o operário José Alves Pinheiro feriu com uma faca o gerente da fábrica Rendas Arp, Henrique Frederico Fernando Witte, com 46 anos de idade, que veio a óbito 28 dias depois deste incidente. José Pinheiro foi empregado na Rendas Arp durante dois períodos relativamente curtos. A sua primeira admissão foi em 1948 trabalhando por cinco meses, quando pediu demissão. Tempos depois voltou a trabalhar nesta fábrica quando foi dispensado no início de novembro de 1952, depois de um ano de trabalho. A demissão segundo o jornal foi sem justa causa e ninguém o informou sobre o motivo.

Dirigindo-se ao Departamento Pessoal sob a gerência Henrique Frederico Fernando Witte, o operário demitido não se conformou com o valor de sua rescisão contratual. Não aceitou os dois mil cruzeiros oferecido por Witte. Procurou um advogado trabalhista e retornou à gerência com um parecer do mesmo que declarava que os seus direitos consistiam em seis mil cruzeiros, três vezes mais. No entanto, Witte reafirmou que não pagaria mais de dois mil cruzeiros ao operário. Depois de muita insistência de José Pinheiro, o gerente fez uma contra proposta de dois mil e oitocentos cruzeiros, mas que não foi aceita.

Saída da fábrica dos operários da Rendas Arp. Acervo internet
Saída da fábrica dos operários da Rendas Arp. Acervo internet

José Pinheiro era arrimo de família de sua mãe e irmãos e temia recorrer a uma ação judicial, pois o processo trabalhista era lento e a fábrica Rendas Arp normalmente esgotava todos os recursos. Não receberia tão cedo qualquer valor e a família passaria por privações. Continuou insistindo que a direção da fábrica lhe pagasse o valor aferido pelo advogado alegando ter sido um bom operário e prova disso era que habitava uma das casas da Vila Arp, destinadas apenas aos funcionários de bom comportamento e qualificados. Todavia, em determinado momento Witte disse que não pagaria nem mais os dois mil cruzeiros, pois estava irritado com a insistência de José Pinheiro. Este último propôs então ao gerente receber a indenização de cinco mil cruzeiros ou então ser readmitido em outra seção, pois acreditava que se tratava de alguma antipatia o motivo de sua demissão. A sua proposta não foi aceita e Witte sugeriu que ele procurasse os seus direitos na justiça. Foi quando José Pinheiro argumentou que a fome já havia chegado em sua casa e, de acordo com o jornal, “o morto[Witte] disse que nada tinha com isso, deu um soco no operário e agarrou-o pelo pescoço furiosamente, tentando estrangulá-lo”.

O Luta Democrática colocava Tenório Cavalcanti como um político em favor dos oprimidos. Acervo BN
O Luta Democrática colocava Tenório Cavalcanti como um político em favor dos oprimidos. Acervo BN

Com porte físico bem inferior ao do gerente, José Pinheiro para se defender sacou de uma faca dando um único golpe em Witte no abdome e fugindo a seguir. No dia seguinte apresentou-se a delegacia de polícia. Evandro Lins e Silva foi contratado pela Rendas Arp atuando como assistente de acusação do promotor Helênio Varani. Já Tenório Cavalcanti foi advogado do réu acompanhado do auxiliar Benigno Rodrigues. Presidia o Tribunal do Júri o juiz Antônio Neder. No duelo de gigantes Evandro Lins e Silva ao ocupar a tribuna declarou que ali estava tão somente na qualidade de advogado, não como político e tampouco como candidato a qualquer pleito. Em virtude desta provocação contra o então candidato à reeleição a deputado federal, Tenório Cavalcanti respondeu nas considerações finais que ali estava como político, como deputado e como advogado, mas não estava ganhando coisa nenhuma, pois o seu constituinte não poderia pagar “rios de dinheiro” como fez a Rendas Arp contratando Lins e Silva. E mais, o seu constituinte era pobre e não tinha recurso para combater a influência econômica das forças que lutavam pela sua condenação. Tenório Cavalcanti atribuiu a atitude do réu a uma tensão social provocada pelos patrões e por um “gritante desequilíbrio social e econômico.” A sua tese foi a de legítima defesa do réu que esfaqueou Witte para não ser estrangulado e igualmente  imperícia médica, pois a vítima teria morrido não em razão da facada, mas do atendimento negligente que recebeu em suas cirurgias.

O júri terminou as 5h da manhã do dia seguinte. José Alves Pinheiro foi condenado a oito anos de reclusão, sendo que já cumprira dois anos. Considerando que após o cumprido de  um terço da pena, o condenado por ser réu primário poderia requerer o livramento condicional, em pouco mais de um ano José Alves Pinheiro estaria livre da prisão. Pode-se afirmar que Tenório Cavalcanti saiu vitorioso, pois sem a sua interveniência o operário poderia ter sido condenado a mais de vinte anos de prisão em razão do desequilíbrio de forças. Leyla Lopes se recorda deste acontecimento e nos informa que no dia seguinte ao julgamento, Tenório Cavalcanti desfilou em um cadillac conversível com a capota arriada pelas principais ruas da cidade. Trajava uma capa preta debruada de cetim vermelho, colete à prova de bala, empunhando garbosamente a “lurdinha”, sua metralhadora alemã. Tenório Cavalcanti teve a sua biografia narrada em diversos filmes como “Carnaval em Caxias”, “O amuleto de Ogum” e finalmente “O homem da capa preta” com o ator José Wilker representando o papel do deputado.

Divulgação do filme O Homem da Capa Preta. Acervo internet
Divulgação do filme O Homem da Capa Preta. Acervo internet
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