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Fabricação de cerveja e vinho: legado europeu em Nova Friburgo

Considerado alimento durante a sua história de mais de seis mil anos, a cerveja fazia parte da alimentação do Homem desde os primórdios da humanidade. Existe uma relação direta entre o pão e a cerveja: ambos são feitos de grãos como a cevada e o trigo, água e fermentação. Assim como o pão, a cerveja alimenta e já foi, por isso, chamada de “pão líquido”. Os egípcios fabricavam cervejas suaves destinadas aos pobres e as aromatizadas com gengibre, tâmara e mel eram reservadas aos nobres. Até o início da Idade Média, a produção de cerveja era uma atividade exclusivamente caseira, de responsabilidade das mulheres e dirigida ao consumo doméstico, já que fazia parte da dieta da família. Mas a cerveja produzida nesta época tinha muito pouco em comum com a bebida que tomamos hoje. De atividade caseira, a produção da cerveja transformou-se lentamente em um negócio com características de indústria.

As primeiras iniciativas de produção em maior escala aconteceram nos mosteiros, a partir do século VI. Os mais famosos são a Abadia de Sankt Gallen, na Suíça, e a Abadia de Bobbio, na Itália. Santo Agostinho é considerado pela Igreja Católica o padroeiro dos cervejeiros. Os mosteiros aprimorando seu método de fabricação produziam cerveja de boa qualidade, com receitas particulares, guardadas em segredo. Em 1040, o Mosteiro de Weihenstephan, em Freising, na Alemanha, conseguiu licença para produzir cerveja comercialmente. É a cervejaria mais antiga em atividade no mundo. Atualmente é um importante centro de formação de mestres cervejeiros e ainda produz a cerveja weihenstephaner.

Na primeira metade do século 19, a cerveja consumida no Brasil era importada da Inglaterra. Com a chegada de imigrantes alemães ao Brasil surgem as primeiras fábricas de cerveja em 1842, com produção em escala industrial. Em Nova Friburgo, em 1861, o alemão Pedro Gehart solicita à Câmara Municipal licença para abertura de uma fábrica de cerveja, mas desconhecemos sobre o seu negócio. No ano de 1869 o imposto cobrado pela fábrica de vinho era de 10$000, enquanto a de cerveja era 16$000. Se havia imposto sobre a fabricação de cerveja, possivelmente Gehart levou o seu negócio adiante. Eram vendidas na vila as cervejas importadas Franziskaner pilsen e preta inglesa.

Família Beauclair. Acervo Mary Beauclair.
Família Beauclair. Acervo Mary Beauclair.

Foi o descendente de imigrantes alemães Albano Beauclair quem instalou no ano de 1893, uma fábrica de cerveja e uma cervejaria na vila de Nova Friburgo. Albano Beauclair era mestre cervejeiro formado pela Escola de Cervejaria de Worms, na Alemanha. Beauclair importara o maquinário da Alemanha e adotava o sistema de Munich no processo de fabricação. De acordo com o jornal O Friburguense produzia em média vinte e duas mil garrafas mensalmente. No verão utilizava o resfriador patente de Neubecker, um engenhoso aparelho para manter a cerveja gelada. A marca da cerveja era Friburgo Brau. Além da fábrica podia-se desfrutar da Cervejaria Beauclair, um tipo de biergarten situada em um sítio aprazível à margem do Rio Santo Antônio, na entrada da cidade. O conceito de cervejaria que se difundira no século 19, as denominadas biergartens eram geralmente situadas em áreas arborizadas, com jardins e próximas a um rio onde se espalhavam mesas e bancos de madeira.

Friburgo Bräu, cerveja do século 19, ganha nova reedição. Acervo internet.
Friburgo Bräu, cerveja do século 19, ganha nova reedição. Acervo internet.

Em 1907, Albano Beauclair arrenda a fábrica a Bernardo Dias, e presta ao novo proprietário os seus serviços. Dias muda o nome da cerveja para germania, descrita como de cor topázio e espuma argêntea. Há o registro de que possuía máquinas de pasteurização, lavagem das garrafas, arrolhamento, etc. As garrafas tinham rótulos litografados em letras em estilo art noveau, com o nome germania impresso em vermelho. As rolhas de cortiça anteriormente presas por arame foram substituídas pelo sistema “teutônia”. Nos parece que a fábrica funcionou até a década 1930, tendo como seus últimos proprietários Lima Jaccoud & Companhia.

A qualidade da água é destacada no rótulo. Acervo pessoal.
A qualidade da água é destacada no rótulo. Acervo pessoal.

Outra cerveja produzida em Nova Friburgo no final do século 19 foi a Suspiro, de propriedade de Gonçalves & Bastos. Suspiro é o nome de uma famosa fonte de água no centro da cidade. Fabricada até os anos de 1940 por Gonçalves & Bastos, a marca passa a ser de propriedade de Vaz Corrêa e Cia. Esta mesma empresa lançou a cerveja com a marca Pátria, de sabor adocicado, já que a Suspiro era amarga. No rótulo chama-se a atenção de que são fabricadas com a “deliciosa água das Braunes”.

Cerveja Mury ganha destaque na imprensa. Acervo BN.
Cerveja Mury ganha destaque na imprensa. Acervo BN.

A partir de 1911, como empresários alemães investem em indústrias têxteis em Nova Friburgo, a partir de então há uma contratação frequente de técnicos alemães para trabalhar nas indústrias. O pesquisador Jayme Jaccoud nos informa que o alemão Ernst Kappel, executivo da indústria Rendas Arp, instalou uma fábrica de cerveja no centro da cidade. A revista Manchete Rural de 1989, traz uma matéria com Alcino Coelho que produzia a cerveja Mury com a ajuda de seus 4 filhos, denominada de “indústria caseira”. Na ocasião a lei de 5.823/72 exigia que a água fosse de excelente qualidade e retirada de nascente. Alcino Coelho tinha uma produção de 1.000 litros por mês e sua meta era expandir para 5.000 litros. No entanto, encontrava dificuldade em comprar garrafas tipo one-way, ou seja, descartáveis.

Nova Friburgo tem se consolidado nos últimos anos como importante produtor de cerveja. Seria um legado da imigração alemã? Ainda é precipitado estabelecer uma relação, mas tudo indica que sim. Afinal os primeiros cervejeiros em Nova Friburgo eram alemães. O exemplo mais interessante é do senhor Érico Antônio Gripp que comercializa em seu restaurante, em Amparo, diversos tipos de cervejas homenageando alguns de seus ancestrais. Os Gripp, uma corruptela de Grieb, descendem do colono alemão Balthasar Grieb, moleiro que chegou em Nova Friburgo em 1824, para ocupar as glebas de terras abandonadas pelos colonos suíços. Um empresário criou a Friburgo Bräu, em homenagem a cerveja produzida em 1893 por Beauclair, acima citado.

E quanto ao vinho produzido em Nova Friburgo? Quando os suíços chegaram na fazenda do Morro Queimado foram realizadas reuniões para explicá-los os métodos de plantio no Brasil. Na ocasião, alguns demonstraram interesse no plantio de vinhas, nos informa Martin Nicoulin, em “A Gênese de Nova Friburgo”. Entre sementes de milho, feijão e trigo foram distribuídas mudas de videiras aos colonos suíços viticultores. A família Rime, além de produzir queijo, introduziu o cultivo de videiras em associação com o vinhateiro Alexandre Burnier. Originário do Cantão de Vaud, Burnier plantou mais de 10.000 videiras. Ele foi recompensado por ter produzido o primeiro vinho de Morro Queimado. No entanto, em 8 de junho de 1841, a Câmara informou ao governo provincial que não vinha progredindo a plantação de vinhas que alguns colonos suíços tentaram realizar para fábrica de vinho.

Em meados do século 19, Nicolao Leglaye pleiteia à Câmara Municipal conceder-lhe mais 4 braças de terreno na pequena gleba que possui na Rua do Château e que tem dado princípio à plantação de vinhas, para fabricar vinho no futuro. A Estação Agronômica do Estado do Rio de Janeiro distribuía mudas de diversas variedades de videiras provenientes da Europa. O edital publicado em O Friburguense de 11 de setembro de 1895, destacava que “havendo neste município terrenos que são próprios para esta cultura”, os interessados deveriam dirigir carta ao diretor da Estação Agronômica, que lhes enviaria as mudas e instruções impressas sobre sua cultura, sem qualquer ônus. Há referência ainda de produção de vinho na Freguesia de Sebastiana(distrito de Campo do Coelho), de uvas oriundas de vários pontos de Portugal, que se prestava à extração do vinho  fresco, do “virgem”.

O português Alexandre Moraes, à direita na ponta, produzia vinho de laranja. Acervo Pessoal
O português Alexandre Moraes, à direita na ponta, produzia vinho de laranja. Acervo Pessoal

Já no fim do século 19, o maior produtor era o capitão Manoel Fernandes Ennes, citado em 1877, no Almanaque Laemert. Produzia e comercializava parte do vinho na vila e parte em outras localidades. Foi reconhecido no ano de 1888, como único produtor de vinho pela Câmara Municipal. Sua vindima possuía 1.500 videiras plantadas em vargem com a produção de 18 pipas anuais. A marca adotada pelo fabricante era “vinho nacional fabricado em Nova Friburgo”. Em reclame publicado em O Friburguense, de 26 de março de 1892, declarava: “Ennes & Lusitano tem sempre grande quantidade de vinhos superiores de uvas fabricadas e aperfeiçoadas nesta cidade e por isso pede a todos os seus fregueses para o coadjuvar neste novo melhoramento industrial”. O que achei curioso foi que encontrei na Imperial Academia de Medicina, um parecer avaliando a qualidade do vinho de Fernandes Ennes. Não imaginava que a certificação da qualidade do vinho viria da Academia de Medicina.

O Barão das Duas Barras, à esquerda, produzia vinho em Friburgo. Acervo Colégio Anchieta.
O Barão das Duas Barras, à esquerda, produzia vinho em Friburgo. Acervo Colégio Anchieta.

De acordo com o jornal A Capital, de 27 de janeiro de 1903, na exposição de frutos e flores promovida pela Câmara Municipal, Elias de Moraes, o segundo Barão das Duas Barras, assim como o sr. Costa Reis concorreram com a exposição de videiras.  O barão cultivava em sua chácara as videiras duchesse, champion e gros-colman, apropriadas ao clima de Friburgo e que amadureciam em meados de janeiro. Já o sr. Costa Reis plantava em sua chácara a duchesse, niagara, labrusca bastard, amadurecendo igualmente em janeiro. O italiano Giovani Giffoni, além de importador do vino rosso di Castellabate, da província de Salerno, em Nápoles, fabricava vinho na Chácara do Suspiro. A garrafa de seu vinho tinha na parte superior a coroa italiana entre as iniciais J. G., de João Giffoni. Havia os que produziam vinho para consumo próprio a exemplo de José Ferreira Thomé que tinha um vinhedo, logo depois da Chácara de Duas Pedras e o português Alexandre Moraes, que produzia vinho de laranja para consumo da família. A dificuldade em comprar uvas fez com que ele usasse a laranja para a elaboração do vinho.

O espanhol Francisco Vidal, produtor de vinho. Acervo Colégio Anchieta.
O espanhol Francisco Vidal, produtor de vinho. Acervo Colégio Anchieta.

Já em 1908, por ocasião da Exposição Nacional, seguiram para o Rio de Janeiro representando Nova Friburgo, Francisco Vidal Gomes e Luiz Guadagnini, fabricantes de vinhos branco e tinto, e Pedro Lamblet fabricante de vinho de ananás. Os Spinelli, tradicional família de imigrantes italianos produzia vinho na Granja Spinelli, denominado de Granjinelli, tendo como vinhateiro Alfredo dos Santos Spinelli. Produzia vinho branco e tinto, na ocasião denominado de claro e escuro. No jornal O Friburguense existe o anúncio de vinho produzido em Rio Grande(Conselheiro Paulino), com a marca “CAC”. Ressalta o anúncio que o produto é puro, não adulterado, engarrafado pela Cia. Antarctica, cumprindo todos os requisitos de higiene.

Videiras no Córrego do Relógio na Vila Amélia. Acervo pessoal.
Videiras no Córrego do Relógio na Vila Amélia. Acervo pessoal.

Outro produtor de vinho em Nova Friburgo foi o português Antônio Pinto Martins, nascido em 1862, no Minho, em Portugal. Em 1914, aos 52 anos de idade mudou-se com a família para Nova Friburgo adquirindo uma chácara, denominando-a de Vila Amélia. O Córrego do Relógio que passa pelo atual bairro da Vila Amélia era circundado por uma pérgula que servia de suporte para as videiras trepadeiras. De um imponente “sobreiro” em sua chácara, árvore que trouxe de Portugal, tirava a cortiça para fazer as rolhas das garrafas do vinho que produzia. A marca do vinho era Vila Amélia.

Os italianos Spinelli produziam o vinho Granjinelli. Acervo José A. Spinelli.
Os italianos Spinelli produziam o vinho Granjinelli. Acervo José A. Spinelli.

Recentemente ocorreu o lançamento do vinho Terras Frias, do empresário André Guedes, com vinhas cultivadas na localidade de Três Picos, distrito do Campo do Coelho. Me parece bem interessante o resgate desta atividade econômica no município. Logo, se conclui que a cerveja era um produto que tinha o monopólio dos alemães na sua fabricação. Já o vinho era produzido por portugueses, espanhóis e italianos por herança atávica. Todas as fontes foram extraídas de pedidos de licença junto à Câmara Municipal de Nova Friburgo para sua produção, bem como de anúncios e artigos de jornais e revista.


Janaína Botelho – Serra News

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