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Sons da roça: uma viagem ao passado da zona rural de Cantagalo

Há semanas, na vila Pitta, onde resido, ouço o canto de um galo. Às vezes, quando ele está arretado, canta o dia todo. Mas eu gosto de seu cocoricooooooo. Esse cântico não me incomoda, me leva à infância, na fazenda da Serra, no distrito de São Sebastião do Paraíba, no município de Cantagalo (RJ), onde passei os primeiros onze anos de minha vida.

A fazenda Serra, que ficava perto do Porto do Tuta – a uns 5km – tinha uma majestosa sede de dois andares. Na parte superior, ficava a residência do meu avô, Américo Fernandes Frauches; no térreo, um armazém para guarda de feijão, milho e arroz; e a senzala dos escravos.

Para acesso ao andar superior, havia uma escada. Certa vez, ao descê-la, caí e quebrei uma clavícula, cuja marca ainda guardo até hoje. Por volta dos 8 anos, os ossos se ajustaram.

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O canto dos canários, os de sua majestade o sabiá, a sinfonia dos pardais, dos rouxinóis, dos bem-te-vis, o mugir da boiada… Êta saudade boa, sô! Lá em casa não havia gaiola. Os pássaros eram livres e alegravam os nossos dias. No galinheiro reinava um galo, que nos acordava por volta das seis da manhã, quando o Sol nascia, ao alvorecer.

Do outro lado, o ruído de uma cachoeira, de uns dez metros de altura, vindo do córrego que nascia numa montanha de pedra da fazenda e por ela passava altaneiro pela várzea para desaguar no rio Paraíba do Sul. Já pensou na gostosura de mergulhar naquelas águas frias?

Cachoeira da fazenda Santa Bárbara
Cachoeira da fazenda Santa Bárbara

Nos fundos da casa, havia uma bica, que corria água dia e noite. Uma vez, meus pais foram a Friburgo, a fim de minha mãe ser operada de apendicite. Tio Walter, irmão de mamãe, ficou em casa, para cuidar de mim. Uma tarde, tomei banho na cachoeira. Uma delícia! Saindo dali, me vesti, todo arrumadinho. Pouco depois, não resisti e fui me banhar na bica com a roupa limpinha. Fiquei ensopado!! Foi uma bronca…

Meu pai tinha uma pequena indústria de rapadura. Na época própria, ele acordava de madrugada, por volta das 3h, e eu ia “ajudar” Sr. Henrique.

Moinho de uma fazenda de Cantagalo, criação artística do desenhista Guilherme Piso.
Moinho de uma fazenda de Cantagalo, criação artística do desenhista Guilherme Piso.

O ranger da moenda, o ruído dos bois rodando em círculo, com o pescoço atrelado a um pau de madeira, a canga, para mover aquele estranho equipamento. O barulho da garapa escorrendo por um cavado construído por meu pai e caindo numa bacia enorme de cobre.

Tínhamos o “milagre” do melado e, finalmente, a rapadura, quentinha organizada em formas. Era o açúcar da fazenda. Ouvindo esse som e sentindo na boca sabores tão inesquecíveis, lembrei-me de Milton Nascimento e Chico Buarque:

Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de mel.

Eu era feliz e não sabia… Como Ataulfo Alves da sua pequenina Miraí.

Mudando para a cidade de Cantagalo, meus pais tinham uma chácara no antigo Pasto dos Reis. Ali ainda continuei a ouvir os sons dos pássaros e de um galo, o rei do galinheiro.

Em Brasília, durante um bom tempo, passava fins de semana em Alto Paraíso de Goiás, na chapada dos Veadeiros, em pousadas que ficavam em plena natureza. Ali, no meio do mato, voltei a ouvir muitos sons da infância. Depois de cinco dias de trabalho, eu tinha dois para relaxar e “pensar na vida”. Ainda bem que pensar não faz barulho… Nem agradável nem desagradável!

Residindo em Marília – de “Marília de Dirceu” −, no interior de São Paulo, por uns dois anos e meio, morava num condomínio de chácaras. Lá os pássaros voltaram. Eu morava em plena natureza, tendo um lago para nadar, pássaros. Ah! e os sapos e rãs.

Eu tinha até um sapo preferido que coaxava no jardim. Um dia, sentado na minha “poltrona do papai”, ouço aquele conhecido coaxar bem perto…Surpresa: achando a porta aberta, o sapo resolveu entrar e vir me visitar. Estava ali, a meu lado. Toquei-o de leve, empurrando-o de volta a seu lugar, no jardim.

De Niterói, onde residi por 35 anos, não tenho boas recordações. As lembranças boas foram literalmente engolidas.

Voltando a Cantagalo, reencontrei o canto de galo, a sinfonia de pardais, dos pássaros. E até uma seriema chama a chuva com seu canto no pasto ali em cima. Mas nem tudo é perfeito: há o ronco das motos, o estridente latir dos cachorros. A sinfonia dos cães…

Contudo, tenho o amor de minha vida, Angela, que reencontrei depois de sessenta anos – uma sinfonia de amor. Os barulhos desagradáveis desaparecem…

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