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Irmãos Richa & Cia: comércio centenário fecha as portas em Cantagalo

O Líbano (República do Líbano), terra dos Richa, está localizado na extremidade leste do mar Mediterrâneo, na Ásia Ocidental ligada à Europa. Seus vizinhos fronteiriços: Síria e Israel. É uma das regiões mais antigas do planeta, com cerca de sete mil anos de história. Terra de fenícios, assírios, persas, gregos, romanos, bizantinos, turcos otomanos. Em sua rica história, o Líbano formou a identidade cultural única em diversidade étnica e religiosa.  O Árabe é o idioma oficial do Líbano, uma língua semita central, parente próxima do hebraico e das línguas neoaramaicas. Sua população é de sete milhões de pessoas. Ao longo da história, foi dominado por diferentes países. Sob o domínio da França, conseguiu a independência em 1943.

Cidade natal de Salvador Paulo Richa, Kafarkatra. (Acervo de Lebano in Picture).
Cidade natal de Salvador Paulo Richa, Kafarkatra. (Acervo de Lebano in Picture).

É desse país milenar que veio para Cantagalo Abdo Bulos Richa, aqui batizado como Salvador Paulo Richa. Nasceu em Kafarkatra, uma histórica cidade libanesa, em 24 de abril de 1884. Seus pais: Bulos Ioussef Richa e Najma Abdala Koury. Aos 24 anos, em 11 de outubro de 1908, Salvador Richa veio para Cantagalo. Aqui, no início dos anos 20 do século passado, Salvador criou a empresa Irmãos Richa Ltda., com a participação de seu irmão, Felipe Richa. Este, mais tarde, foi morar em Miracema, saindo da sociedade. A Casa ficava na Rua Barão de Cantagalo, 76, onde funciona até hoje, apenas com a mudança do nome dessa via pública, agora Av. Rodolpho Albino. O seu atual proprietário, Jorge Wardini Richa, aos 91 anos de idade, vai encerrar as atividades da Casa Salvador P. Richa, no dia 31 de maio de 2023.

Deste o início, a Casa vendia “fazendas, roupas feitas, armarinho, artigos para senhoras, sedas, cachat, perfumarias, malas, ferragens, louças, tintas, calçados, chapéus de sol e de cabeça”. Anunciava, ainda, ser “atacado da São Paulo Alpargatas S. A.”. Era um atacadão e varejo ao mesmo tempo. Uma loja comercial de sucesso, graças à visão comercial de seu fundador e proprietário.

Certidão de casamento de Abdo (Salvador) e Nazareh, em árabe. (Acervo de Jorge Wardini Richa).
Certidão de casamento de Abdo (Salvador) e Nazareh, em árabe. (Acervo de Jorge Wardini Richa).

Em 1927, Salvador volta ao Líbano, a fim de se casar. Na Igreja de Nossa Senhora, do Convento de Sao Abda, em Deir El Kamar, Abdo (Salvador) Bulos Richa casou-se, em 1º de maio de 1927, com Nazareh, filha de Nakhle Abdo Wardini, e de Rosa João Wardini. Ela estava com 16 anos de idade; ele com 43. O padre Yuhanna Maroun Khouri, pároco de Kafarkatra, foi o responsável pela celebração da união de Abdo com Nazareh, em cerimônia simples, mediante autorização do bispo Agostin Bustani. Padrinhos: Toufic Yusef Sleiman Antoun e Alivana Nakhle Adbo Wardini. Logo após a cerimônia, o casal Abdo e Nazareh viajou para o Brasil.

Eles embarcaram no transatlântico italiano SS Principessa Mafalda, no porto de Gênova, Itália, com destino ao Rio de Janeiro. O trajeto seria Gênova, Barcelona, Dakar, Rio de Janeiro, Montevidéu e Buenos Aires. Todavia, próximo ao litoral do estado da Bahia, na região do arquipélago dos Abrolhos, o transatlântico, pertencente à companhia Navigazione Generale Italiana, mergulhava no oceano.

Salvador e Nazareth, em foto após a chegada do casal a Cantagalo. (Acervo Jorge Wardini Richa)
Salvador e Nazareth, em foto após a chegada do casal a Cantagalo. (Acervo Jorge Wardini Richa)

O Principessa Mafalda levava cerca de 1.300 pessoas. Em sua carga, a valiosa quantidade de 250 mil liras em ouro que o governo italiano estava enviando à Argentina. Segundo noticiário da época, o desespero tomou conta da tripulação e dos passageiros. Muitas pessoas se recusaram a abandonar o navio e os botes salva-vidas não estavam em boas condições. Mas o pedido de socorro foi rápido. O navio Alhena resgatou mais de 500 pessoas, o Empire Star, 180; o Formose, 200; o Mosella e o Rosett pouco mais de 20. Nesse trágico acidente, cerca de 400 pessoas perderam a vida.

Por motivos desconhecidos, Salvador e Nazareh deveriam embarcar para o porto da Guanabara, conforme registros da época. Contudo, foram parar na Argentina. Foram transportados para o navio com destino a Buenos Aires.

Principessa Mafafalda. Início de afundamento na costa marítima de Salvador, BA. (Acervo Wikipédia)
Principessa Mafafalda. Início de afundamento na costa marítima de Salvador, BA. (Acervo Wikipédia)

No navio que aportou na Baía da Guanabara, trazendo os náufragos do Principessa Mafalda, constava o nome de Salvador e Nazareh. Eles foram dados como mortos. Missa de “corpo ausente” foi rezada para os dois. Mas eles foram socorridos no transatlântico que ia para Buenos Aires, onde foram parar. Conseguiram vir em outro navio para o Rio de Janeiro, daí para Cantagalo. Na última semana de novembro de 1927, milagrosamente, chegava em Cantagalo, o casal Salvador e Nazareh. Ela já ficou grávida do primeiro filho, Paulo, durante a viagem marítima. A chegada inesperada do casal causou espanto, inicialmente. Eles foram dados como mortos no naufrágio de 25 de outubro de 1927. Aos poucos, os amigos e “primos” acordaram para a realidade.

Em Cantagalo, seus parentes ansiavam por abraçarem os patrícios. A comunidade libanesa em Cantagalo era responsável pela maioria absoluta do comércio local. E Salvador era respeitado por todos. Um homem correto, íntegro em sua vida pessoal e comercial.

Salvador Paulo Richa faleceu aos 76 anos de idade, em 12 de março de 1961, sendo sepultado no cemitério de Cantagalo. Sua esposa, Nazareh, morreu em 1989. Legaram a Cantagalo seis filhos: Paulo, Najma (Naná), Norma, Jorge, Glória e Farid.

Propaganda clássica da Casa Salvador P. Richa, nos idos de 80. (Acervo de Jorge Wardini Richa)
Propaganda clássica da Casa Salvador P. Richa, nos idos de 80. (Acervo de Jorge Wardini Richa)

Após a morte de Salvador, seu filho, Jorge Wardini Richa, que com ele já trabalhava, assumiu o negócio, ao lado  do  irmão Farid Wardyni Richa. Ambos trabalharam juntos na loja por muitos anos, se dedicando e este grande comércio.

Antes de trabalhar com o pai, aos dezoito anos de idade, Jorge foi mascate ou mercador ambulante, desde a região serrana, cobrindo o Centro-Norte e o Norte fluminense, além das cidades limítrofes do Leste de Minas Gerais e do Sul do Espírito Santo. Por cumprir religiosamente seus compromissos financeiros, conseguiu, desde o início, o crédito necessário para o desenvolvimento de seu negócio. Quando veio trabalhar na Casa Salvador Richa, ele tinha um considerável patrimônio financeiro, além de uma experiência comercial adquirida em suas andanças nessas regiões. Ele conta que teve uma época em que vendeu uma tonelada de pregos em um mês.

Jorge fez o curso primário na escola de Dona Miloca e o restante da educação básica no Colégio Euclides da Cunha. Estudos suficientes para que dominasse a matemática financeira e a hábil comunicação com os clientes e fornecedores, indispensável ao seu sucesso na atividade comercial que desenvolve desde os dezoito anos e que encerra neste 31 de maio de 2023, quando ele completa 91 anos, com a mesma lucidez dos 18.

Jorge W. Richa em entrevista ao Museu de Imagem e Som de Cantagalo (MUISC), do Instituto Mão de Luva.. (Foto de Marry Ane)
Jorge W. Richa em entrevista ao Museu de Imagem e Som de Cantagalo (MUISC), do Instituto Mão de Luva.. (Foto de Marry Ane)

Conheceu a sua futura esposa quando iniciou seu trabalho, em 1950. Diz ele, em entrevista gravada nos estúdios do Instituto Mão de Luva, para o Museu de Imagem e Som de Cantagalo (MISC), que estava no balcão da loja, quando entrou uma adolescente. Uma bela mulher. Ela queria comprar um pente. Ele disse: “Primeiro quero saber o seu nome”. Ela, tímida, titubeou, mas disse: “Maria Ignez”. Ele falou, convicto: “Vou namorar e me casar com Você”. Dois dias depois estavam namorando, ele com 18 e ela com 13 anos de idade.

Jorge assumiu o compromisso de casar-se com ela quando terminasse a construção da casa, na qual vive até hoje. Isso foi possível em 1964; ele com 32 e ela com 27 anos de idade. O casamento acabou 68 anos depois, quando Maria Ignez faleceu. O casal tem três filhos: Lenise Correa Richa, nascida em 31 de julho de 1967, médica, casada com Eduardo Machado Fonseca, ortodontista, pais de Maria Eduarda, médica, e Ana Luísa, futura bacharel em Direito, residente na cidade do Rio de Janeiro; Renata, delegada de polícia, 58 anos de idade, casada com o cantagalense Tito Naegele, médico ortopedista, residem em Niterói e são pais de Natália, advogada; e Jorge Jr, o caçula, iniciou sua atividade profissional em Santa Catarina, depois em São Paulo (Santos) e, mediante concurso, ingressou na Caixa Econômica Federal, onde se encontra em atividade no Rio de Janeiro. Todos com sucesso em suas atividades profissionais.

Fachada do prédio da Casa Salvador P. Richa. (Acervo do Instituto Mão de Luva)
Fachada do prédio da Casa Salvador P. Richa. (Acervo do Instituto Mão de Luva)

Recentemente, a Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Cantagalo (ACIACAN) prestou uma homenagem a Jorge Richa, que continuou com a tradicional Casa Salvador P. Richa, após o falecimento de seu pai. A Casa, aos cem anos de existência, encerra as suas portas, mas a saga de Salvador Paulo Richa deve ser lembrada como um exemplo para as novas gerações, além de resgatar na memória dos cantagalenses uma jornada das mais belas e vitoriosas da geração de libaneses que contribuiu e ainda contribui para o desenvolvimento socioeconômico de Cantagalo e região.

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