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Levante de escravos na freguesia de Nova Friburgo

O território de Nova Friburgo era quase três maior no século 19 em relação a atual extensão do município. Dividido em quatro freguesias, além de São João Batista, sede da vila, havia as freguesias de Nossa Senhora da Conceição do Paquequer, São José do Ribeirão e Nossa Senhora da Conceição do Ribeirão da Sebastiana. Os levantes de escravos que trataremos neste artigo ocorreram na freguesia do Paquequer ligada a Nova Friburgo até o ano de 1881, quando será incorporada ao município do Carmo. Em 1890, desmembra-se do Carmo, ganha o predicado de município e passa a denominar-se Sumidouro. Dois anos depois fica suprimido este município e uma parte passa pertencer ao Carmo, outra a Duas Barras e uma terceira a Sapucaia. No entanto, no mesmo ano, em 1892, fica restabelecido o município de Sumidouro com todo o seu território.

Depois de São José do Ribeirão a freguesia do Paquequer era a que possuía maior número de indivíduos escravizados. No levantamento censitário realizado em 1872, havia no Paquequer 2.167 escravizados e 1.898 habitantes livres. Suas unidades de produção se dedicavam ao cultivo do café e na fabricação de açúcar em seus inúmeros engenhos. Tudo indica que os lavradores usavam o porto de Magé para exportação de seus produtos e não o Porto das Caixas e neste caso as tropas deveriam passar pela vila de Nova Friburgo. Um “levantamento” de escravizados, que doravante passaremos a denominar de levante, ocorreu em 1877 culminando com o assassinato do comendador Joaquim José dos Santos, chefe do partido conservador, deixando esta freguesia de Nova Friburgo sob forte tensão.

Fazenda Santa Cruz na freguesia do Paquequer. Acervo pessoal
Fazenda Santa Cruz na freguesia do Paquequer. Acervo pessoal

Quatro anos antes houve uma insurreição de escravizados nesta mesma freguesia na Fazenda da Boa Vista que contava com 137 escravos. O finado Francisco Luiz Pereira havia instituído como herdeiros o suíço José Warol, José Antônio Vidal e Luiza Pereira da Rocha, com a obrigação de administrarem a fazenda até pagarem as dívidas com o produto de sua cultura. Em um ato de generosidade, comum aos homens diante da morte, Francisco Luiz Pereira deixara livres, por testamento, todos os seus escravos com a obrigação de trabalharem somente até pagarem as dívidas da herança. No entanto Warol não aceitou a disposição da prometida liberdade, apresentando-se como senhor legítimo  dos escravizados provocando uma insubordinação. Warol fez uso da força solicitando ajuda do subdelegado que reuniu praças e inspetores de quarteirão para acabar com a insurreição. Os escravizados armados com foices resistiram afugentando a força pública mesmo utilizando armas de fogo. A seguir 29 escravizados deixaram a fazenda e se dirigiram para Magé onde tencionavam tomar um barco para a Corte, a fim de fazer valer o seu direito à liberdade. No entanto foram aprisionados no porto.

Prisão de escravizados no interior da senzala no Paquequer. Acervo pessoal
Prisão de escravizados no interior da senzala no Paquequer. Acervo pessoal

Referindo-se ao “crime bárbaro” perpetrado em relação ao comendador Joaquim José dos Santos por seus escravos, o articulista do jornal O Município, de Vassouras, na coluna A situação dos fazendeiros em relação a seus escravos, assim escreveu: “Por mais de uma vez, noticiando crimes perpetrados por escravos nas pessoas de seus feitores ou administradores, quer neste, quer nos municípios vizinhos, temos feito sentir a necessidade de adotarem-se medidas[de segurança] que garantam os proprietários de escravos e seus prepostos nas fazendas rurais. (…) a situação dos fazendeiros em relação a seus escravos piora de dia a dia; o sobressalto é geral, em vista da atitude que os escravos vão tomando…”

Instrumento de castigo da Fazenda Paredão no Paquequer. Acervo pessoal
Instrumento de castigo da Fazenda Paredão no Paquequer. Acervo pessoal

A Pátria igualmente faz referência a este levante que deixou as pessoas sobressaltadas com sua segurança pessoal e correndo grande risco. Referindo-se aos escravizados chamou-os de “flagelo da nossa pátria”. Segundo o jornal como a força pública não conseguia controlar os “indisciplinados servos”, os fazendeiros propunham auxiliar o governo com dinheiro para instalar um destacamento de no mínimo 20 praças, para garantir a segurança contra a “ousadia dos servos”.

Instrumentos de castigo da freguesia do Paquequer. Acervo pessoal
Instrumentos de castigo da freguesia do Paquequer. Acervo pessoal

Tudo indica de acordo com os discursos nos jornais, que os homicídios praticados por escravizados vinham pululando não só nesta freguesia, mas também em outras regiões no vale do Paraíba fluminense. Qual seria o motivo destes homicídios? Os fazendeiros relacionavam os assassinatos a recusa do Imperador D. Pedro II de executar a lei n° 4 de 10 de junho de 1835. Esta norma assinalava que os escravizados seriam punidos com a pena de morte se matassem ou ferissem gravemente o seu senhor, qualquer membro de sua família, o administrador ou o feitor. Estabelecia ainda que o voto de dois terços dos jurados seria suficiente para a condenação à forca, quando anteriormente a pena capital requeria a unanimidade do júri, e não permitia a interposição de recursos judiciais às instâncias superiores. No entanto, D. Pedro II influenciado por seu amigo o escritor francês Victor Hugo, crítico ferrenho da pena de morte, a partir do ano de 1876 passa a comutar todas as sentenças de pena de morte, tanto de homens livres como de escravos, em galés perpétuas, ou seja, trabalhos forçados. A pena de morte é oficialmente extinta na proclamação da República, mas na prática foi a partir desta disposição do Imperador de comutar a pena capital em galés perpétuas.

Fazenda São Lourenço na freguesia do Paquequer. Acervo pessoal
Fazenda São Lourenço na freguesia do Paquequer. Acervo pessoal

Como os homicídios praticados pelos escravizados contra os seus senhores e prepostos aumentaram significativamente a partir da clemência do Imperador, os fazendeiros acreditavam que os crimes eram praticados propositalmente para os escravizados ficarem sob a custódia do governo executando trabalhos. Ou seja, era melhor ser um “forçado” da nação do que um escravo de fazendeiros capitalistas. No Jornal do Commercio de dezembro de 1877 há uma interessante carta de um fazendeiro anônimo da freguesia do Paquequer sob o título de A Sua Majestade o Imperador. O signatário assim escreve:

“Vossa majestade(…) foi sempre aclamado sábio e justo, que por certo terá meditado sobre a sorte dos lavradores, classe única produtora do nosso país, não desconhecerá sem dúvida em que condições precárias ele atualmente se debate; não é só a falta de braços, a seca que devasta e vitima nossos irmãos lavradores do norte; mas um elemento de definhamento e desconfiança vai levantando a sua híbrida cabeça para sopesar nos gravames que afligem a lavoura. O elemento escravo, senhor, tem-se tornado uma ameaça constante para a tranquilidade dos lavradores. Vossa majestade, embora muito longe do contato da realidade da vida dos lavradores, conhece e aprecia as condições das relações sociais morais e legais do senhor para com o escravo.

(…) Senhor a pena de morte, que é lei vigente no país, é uma necessidade imprescindível; assim o pensaram nossos legisladores que tão sabiamente a impuseram a certos e determinados crimes em certas e determinadas circunstâncias e a não ser esta, qual a pena a impor ao indivíduo que não goza da liberdade[escravizado], que considera, e realmente assim o é, melhorar de condições passando da propriedade de um senhor para escravo da nação, como dizem, e ser agrilhoado algumas vezes por coincidência como companheiro de calceta do homem livre que, quem sabe, por crime menos horroroso foi condenado a galés.  A comutação da pena de morte a que o júri muitas vezes é obrigado a condenar o escravo, ato filho do coração magnânimo de Vossa Majestade, tem sido o incentivo mais tenaz para a perpetração de crimes que todos os dias se revestem de maior gravidade e se rodeiam de circunstâncias lamentáveis.

O cinismo e a desfaçatez com que o escravo que cometeu um crime se apresenta à autoridade mais próxima, mostrando o instrumento com que o praticou, calculadamente rodeia seus depoimentos dos horrores da execução, para conseguir no júri, quando menos, a condenação nas galés. (…) temos os nossos haveres em grande parte empregados em escravos, nossa vida e de nossas famílias nas mãos dessa classe que está se transformando em horda de assassinos; não podemos, sem angústia, encarar para o futuro que nos aguarda, e sem deixar de pedir a Vossa Majestade, um paradeiro para a carreira infrene que levam os lavradores ao abismo e a morte!

Senhor, sindicai do número de criminosos por homicídio que se acham detidos nas diferentes cadeias do Império; abri a estatística dos crimes e delitos e vereis a escala ascendentes dos homicídios praticados por escravos nas pessoas que os dirigem na lavoura[feitor] e mesmo contra seus senhores, escala que ultimamente tem se elevado aos saltos. O lavrador desespera, perde a fé quando em presença do público o escravo narra com ênfase seu crime e ainda mais que aguarda com impaciência a sentença do tribunal do júri; porque diz ele ‘o nosso imperador perdoa a pena de morte a que temos a certeza de ser condenado’; ainda mais senhor, o escravo condenado ou por condenar procura e aconselha os outros para pelo mesmo meio conseguirem o fim que ele conseguiu ou almeja; isto é fato verídico e notório entre os lavradores.

A comutação da pena de morte é mais um tento marcado contra a vida do lavrador. Os fatos de assassinatos cometidos por escravos não são, senhor, filhos do mau trato e que a condição do escravo atualmente tenha piorado; pelo contrário seria bastante atender ao grande número de manumissões proveniente da generosidade particular para aquilatar tão diferentes são os tempos atuais para os anos mais remotos, além do que senhor a índole e caráter dos filhos do Brasil foram e são reconhecidos como dóceis e brandos e portanto incapazes de dar ao escravo os maus tratos e rigores que foram observados em outros países quando existiu nele o cancro da escravidão.

A classe proletária do velho continente sofre rigores incomparáveis ao escravo; quem dera ao proletário inglês ou francês ter sempre tratamento igual ao que em geral tem o escravo no Brasil; aqui o escravo não morre de fome, os elementos necessários para a sua manutenção eles os têm em abundância. (…) é muito justo e regular que a pena de morte seja executada no Brasil onde existem escravos; (…) é nossa convicção e convicção enraizada entre os lavradores que a execução da pena de morte é o único corretivo possível para fazer sustar a série crescente de homicídios cometidos por escravos. É imprescindível para evitar um mal maior seja dada a morte por lei.(…) lembrai-vos mais senhor que inúmeros órfãos se acham ao desamparo pela perversidade infrene que tem desenvolvido a classe de escravos;(…) Senhor em algumas freguesias o assassinato de indivíduos que dirigem escravos na lavoura ou dos próprios senhores tem-se tornado endêmico.

Na freguesia do Sumidouro[Paquequer] a segurança do lavrador é assaz precária, o sangue dos senhores tem servido de pasto para saciar a sanha dos seus próprios escravos; assim dentro de pouco tempo após um longo período em que ali não constava fato de tal ordem os fazendeiros Francisco Waroll, José Vidal, Manoel Neves e ultimamente no dia 31 de outubro o abastado e infeliz José Joaquim dos Santos caiu vítima da ferocidade de seus próprios escravos.(…) é o cálculo e esperança de melhorar de sorte mudando da condição de escravo do lavrador para escravo da nação com igualdade de condições ao homem livre que é condenado a galés; e tanto mais isto é verdade, que assombra, confrange-nos ver o comportamento de dez escravos autores da terrível tragédia que teve lugar na fazenda do infeliz José Joaquim dos Santos, depois que foram recolhidos a cadeia de Nova Friburgo, onde após o crime foram se apresentar. Todos eles senhor se atribuem maior quinhão no crime, e meditai com que fim esta luta inaudita para conseguir ser o mais culpado; sem dúvida para conseguir a pena última que vosso perdão transforma em galés perpétuas, pena que eles consideram um prêmio…”

Fazenda São Lourenço na freguesia do Paquequer. Acervo pessoal
Fazenda São Lourenço na freguesia do Paquequer. Acervo pessoal

Como vimos antes a comutação automática da pena de morte em galés perpétuas por determinação do Imperador era visto pelos lavradores da freguesia de Nova Friburgo como o motivo do aumento de homicídios por parte dos escravizados. Era melhor trabalhar como forçado para a nação do que ser servo de particulares. Melhorava sua situação ser agrilhoado na calceta a um homem condenado livre do que a um de sua mesma condição. Situações como esta nos mostra que ainda temos muito a aprender sobre a dinâmica da escravidão no Brasil.


Fontes: Diário de Minas, 21 de fevereiro de 1873; Jornal do Commercio, 13 de novembro de 1877; Jornal do Commercio, 04 de dezembro de 1877; A Pátria, 22 de fevereiro de 1873; A Pátria, 05 de dezembro de 1877; O Município, 13 de dezembro de 1877.

Janaína Botelho – Serra News

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