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Geração bendita. É isso aí bicho! Repressão de hippies em Nova Friburgo

Uma comunidade hippie se instala em um sítio em Vargem Alta, em Nova Friburgo, no final da década de 60, do século 20. Assim como outros grupos da contracultura, o movimento hippie tem seus primeiros registros nos Estados Unidos entre os anos 1950 e 1960. A contracultura designava um conjunto de manifestações culturais que se opunha à situação vigente sendo precursores os beatniks formado por poetas boêmios como Jack Kerouac, William Burroughs e Allen Ginsberg. Já os hippies eram em sua maioria jovens das classes médias e altas dos centros urbanos. Adotavam a vida em comunidade fugindo das regras de comportamento estabelecidas e buscando a construção de uma sociedade alternativa. A liberdade, o psicodelismo e o pacifismo eram os seus paradigmas. “Faça amor, não faça guerra” era um dos slogans mais proclamados pelos hippies no Brasil durante os anos 70, numa referência à guerra do Vietnã.

Para se manter plantavam flores de corte e faziam artesanato vendendo na cidade. Acervo BN.
Para se manter plantavam flores de corte e faziam artesanato vendendo na cidade. Acervo BN.

No final dos anos 60 Karl Kohler, conhecido como Carlinhos, filho de Karl Wilhelm Kholer, proprietário do hotel Sans Souci, muito frequentado por cineastas e artistas cariocas, se mudou para o sítio “Quiabus” de propriedade da família, localizado em Vargem Alta, no distrito de São Pedro da Serra. Criando uma comunidade, gradativamente foram chegando adeptos da filosofia hippie e se instalando nas casas de colonos do sítio. Eram aproximadamente 70 e formavam uma das primeiras comunidades hippies no Brasil. Para se manter plantavam flores de corte e faziam artesanato vendendo no centro de Nova Friburgo. Um dos hippies era Carlos Roberto Bini, friburguense, 29 anos, que havia abandonado a profissão de advogado para viver na comunidade “Quiabus”.

Karl Kohler produtor e roteirista de Geração Bendita. Acervo pessoal
Karl Kohler produtor e roteirista de Geração Bendita. Acervo pessoal

Carlos Bini, que já havia realizado dois curtas-metragens, “Cristo Afogado” e “Erotismo”, começou a fazer registros filmando o cotidiano no sítio. A partir dessa iniciativa, Kohler teve a ideia de produzir um longa-metragem. O roteiro foi a biografia da vida de Carlos Bini contando a história de um advogado que resolve abandonar a carreira e se juntar à comunidade hippie. O protagonista vive um romance proibido com uma moça de classe média e de família tradicional que estava noiva. Com muita dose de humor os hippies são perseguidos pelas insistentes catequeses de um pastor da igreja Batista. A produção era de Karl Kohler e Carlos Doady e a direção de Carlos Bini. O francês Fritz Meldy Lucien Mellinger, ex-assistente do cineasta francês Claude Deluxe foi o diretor de fotografia. O filme começou a ser rodado em agosto de 1970 sendo o elenco a própria comunidade hippie demonstrando o seu próprio estilo de vida. Além deles, contou com a participação de friburguenses como Augusto Spinelli, os irmãos João e Renato Côrtes Teixeira, Carlos Rosemberg, José Carlos Thurler Ruiz e Paulo Carvalho, pessoas que mais tarde se destacariam na sociedade friburguense. Geração Bendita além de ser um relato sobre o estilo de vida hippie aborda a sua difícil relação com a sociedade friburguense. O filme é documental, daí o seu inestimável valor, pois mostra fielmente a cultura hippie da época.

Carlos Bini protagoniza a trama e dirige Geração Bendita. Acervo internet
Carlos Bini protagoniza a trama e dirige Geração Bendita. Acervo internet

No entanto, as filmagens começaram a incomodar as elites friburguenses. Três meses depois de iniciadas, o delegado Amil Nei Richard prende os participantes durante uma cena realizada no centro da cidade. Determinou que fossem cortados os cabelos longos dos homens e a barba escanhoada. O delegado não admitia jovens cabeludos com vaidades próprias do sexo feminino como o uso de cordões e pulseiras. Proibiu-lhes igualmente de portar roupas coloridas e exóticas. Ainda segundo ele, a apologia ao amor livre e a promiscuidade era incompatível com as tradições e valores cristãos da população friburguense. Os hippies que não eram friburguenses foram obrigados a deixar a cidade dentro de 5 dias. Amil Richard declarou temer que os hippies estivessem aliciando jovens friburguenses para a sua comunidade e ordenou a sua prisão “para defender a cidade de tipos exóticos, sem sexo definido que estão infestando a região”. Os diretores e produtores foram presos. Houve protestos da população contra a arbitrariedade do delegado.

Carlos Doady produtor de Geração Bendita. Acervo pessoal
Carlos Doady produtor de Geração Bendita. Acervo pessoal

A comunidade “Quiabus” ficou aproximadamente de 3 anos em Nova Friburgo. Fizeram uso de entorpecentes como LSD e maconha para ampliar o nível de consciência e proporcionar uma experiência mística. Carlos Doady nos informa que alguém lhe perguntou sobre a utilização de drogas na comunidade “Quiabus”. Ele teria respondido “Raramente!”. “Raramente usavam?”, indagou a pessoa. “Raramente faltava!”, respondeu. Poucos meses após a prisão dos hippies, o delegado Nei Richard foi transferido da cidade em consequência da repercussão negativa que teve o episódio. Na ocasião, a mídia friburguense se calou conforme nos informa as pesquisadoras Debora Breder e Thamyres Saldanha Martins no artigo “É isso aí, bicho, narrativas sobre o filme Geração Bendita no Jornal A Voz da Serra durante a ditadura militar”. O jornalista Pedro Paulo Cúrio, em um artigo intitulado “Na tonga da mironga do cabuletê!” criticou os hippies chamando-os de gang do tóxico, salafrários e apoiava a atuação do delegado ao expulsá-los da cidade. Após esse incidente, as filmagens de “Geração Bendita” foram retomadas em Santo Antônio de Pádua e Itaocara, mas tiveram igualmente problemas com a polícia.

O francês Fritz Meldy Lucien Mellinger foi o diretor de fotografia. Acervo pessoal
O francês Fritz Meldy Lucien Mellinger foi o diretor de fotografia. Acervo pessoal

No lançamento do filme, em 1971, em plena ditadura militar, a Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal exigiu que mais de 40 minutos fossem cortados, o que levou a refilmagem de alguns trechos e acréscimos de novos. Os trechos cortados foram re-filmados, gerando problemas de continuidade. Em 1973 os produtores alteraram o título do filme de “Geração Bendita” para “É Isso Aí, Bicho!” com o intuito de burlar a censura. Mesmo com as alterações, o filme ficou pouco tempo em cartaz antes de ser proibido novamente pelos militares. Voltou a ser exibido em Nova Friburgo, Rio de Janeiro e São Paulo. Porém, poucos meses depois o filme foi novamente proibido e apreendido pela  Divisão de Censura. Karl Kohler e Carlos Doady foram presos e obrigados a assinar um Termo de Confissão no DPOS, a polícia política da época.

Kohler, Doady e Bine participam como atores de Geração Bendita. Acervo BN.
Kohler, Doady e Bine participam como atores de Geração Bendita. Acervo BN.

Expulsos de Nova Friburgo, um grupo da comunidade “Quiabus” foi Barra do Sana, na Serra de Macaé e outro para Visconde de Mauá. De acordo com o pesquisador Igor Fernandes Pinheiro, em 2002 Carlos Doady conseguiu através de Ernani Hefner, diretor do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, reaver os originais, que foram limpos e organizados. No ano seguinte, o filme foi telecinado pela empresa Casablanca e transformado em arquivo digital. O artista plástico friburguense Osvandil Silveira Quimas realizou a reedição do material, inclusive de resincronização de áudio. A seguir foi restaurado e remasterizado por Bruno de Oliveira. Foram resgatadas todas as cenas que haviam sido cortadas, reintegrando-as ao filme.

O rock psicodélico da banda Spectrum é uma preciosidade de Geração Bendita. Acervo internet
O rock psicodélico da banda Spectrum é uma preciosidade de Geração Bendita. Acervo internet

Uma grande preciosidade de “Geração Bendita” ou “É isso aí bicho” é a trilha sonora da banda Spectrum. As músicas foram compostas durante as gravações, atendendo às necessidades das cenas e dos personagens. O disco foi lançado no mesmo ano que o filme. O rock psicodélico da trilha do filme era o estilo musical característico do movimento hippie. Atualmente, o long play em vinil da banda é disputado por colecionadores do mundo inteiro e ocupa os primeiros lugares nas want lists de raridades psicodélicas. O filme de Karl Kohler não foi o primeiro a abordar a temática da contracultura. Conforme Igor Fernandes Pinheiro em sua dissertação de mestrado “Não fale com paredes, contracultura e psicodelia no Brasil”, bem como “Meteorango Kid, o herói intergaláctico”, lançados em 1969, já havia abordado a temática de uma comunidade hippie. “Geração Bendita” definitivamente entrou na lista dos filmes cult, fazendo parte da historiografia do cinema nacional, estando disponível no youtube. O documentário sobre os bastidores do filme podem assistidos em meu canal.

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