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Magia, crime e castigo: o caso Moacir Valente em Cantagalo

O município de Cantagalo se notabilizou como um dos mais importantes produtores de café durante o Império. Ao longo de sua história teve diversos ciclos econômicos como do ouro, do café e da pecuária. Paralelamente a esta última atividade econômica a extração de calcário, outro vetor de desenvolvimento local. Curiosamente, Cantagalo retorna à mineração, não do ouro que havia despertado a cobiça de Mão de Luva, e sim do calcário, rico em seu território. Cantagalo depois de ser reconhecido no Brasil e no mundo como o berço dos barões do café ganharia pouco mais de um século depois destaque na imprensa em razão de um homicídio com manchetes como “O Demônio em Cantagalo” e “O Vampiro de Cantagalo”. O crime envolvia a prática de magia negra que resultou no linchamento dos supostos assassinos.

Moacir Valente. Acervo O Globo
Moacir Valente. (Acervo O Globo)

Toda esta história tem como protagonista o empresário Moacir Lima Valente. Carioca, morava na Rua Humaitá no bairro de Botafogo, no edifício Clarice Basbaum. Solteiro, na faixa etária dos 50 anos, era descrito como um homem solitário e raramente recebia visitas em seu apartamento que se limitava a duas irmãs que moravam em Niterói. Adquire no município de Cantagalo a Fazenda Bom Vale, histórica propriedade rural de 900 hectares. Desde então a sua rotina fica dividida entre o seu apartamento e a fazenda. Na ocasião do crime que reportamos Moacir Valente havia adquirido há 23 anos esta propriedade rural. Durante todo este tempo não fez amizades em Cantagalo. Não participava de acontecimentos sociais no município apesar de ter sido convidado. Tudo indica que adquiriu a Fazenda Bom Vale não para criar gado leiteiro ou de corte como os demais proprietários rurais da região. Mas sim em razão de sua rica jazida de calcário, de elevado teor de pureza, que servia para produzir um cimento especial destinado a concretagem de usinas atômicas.

Criou juntamente com dois sócios a Cimento Portland Bom Vale, sendo sócio majoritário. Moacir Valente inicia negociações com grupos empresariais multinacionais para a exploração do precioso calcário de sua fazenda. Em todos elas não conseguiu fechar qualquer acordo. Não desistindo de seu projeto entabulou negociações com um representante local da empresa austríaca Voestalpine, que se interessou na jazida da Fazenda Bom Vale. No entanto ocorreram dificuldades para a concretização do negócio com a Voestalpine. O investimento era alto e cogitava-se até na construção de um ramal ferroviário ligando Cantagalo a Macaé para o escoamento do minério. Tudo indica que o fato de Moacir Valente não abrir mão do controle acionário da futura empresa foi um empecilho para o fechamento do negócio, mas outros fatores podem igualmente ter concorrido. A empresa austríaca desistiu da parceria e mais uma vez Moacir Valente viu o seu projeto não se concretizar. Vendo malogrados todos os seus esforços resolveu então “abrir caminho” de seu negócio recorrendo ao sobrenatural.

Apelou para os serviços de um pai-de-santo do Centro Espírita na Penha no Rio de Janeiro, local que frequentava. O pai-de-santo era conhecido como Joldeir ou Ogir, que recebia um cambono de nome Alfredo e também o caboclo Tranca-Ruas das Almas. Na realidade o seu nome era Ajuricaba Coutinho da Paz. Neste centro Moacir Valente já estava habituado a práticas de “baixo espiritismo”, rituais de imolação de animais como cabrito, gato e galinha preta. O pai-de-santo Joldeir costumava frequentar a Fazenda Bom Vale praticando rituais de macumba, quimbanda e magia negra. Muitos amigos cariocas do empresário participavam destes rituais em sua fazenda. Todavia, para Moacir Valente ter os caminhos abertos nos negócios o Exu Tranca-Rua das Almas, manifestado em Joldeir, exigiu o sacrifício de um “anjinho”, ou seja, de uma criança.

No dia 07 de outubro de 1979 o casal Antônio Carlos Guimarães Vieira e Sandra Mansur Vieira com seus quatro filhos foram convidados para participar de um piquenique na Fazenda Bom Vale, a convite de Maria da Conceição Pereira, tia de Sandra. Existe uma outra versão de que Sandra Vieira teria ido com a mãe, as irmãs e com os respectivos filhos, pois o marido carreteiro estava em viagem de trabalho. No piquenique, em dado momento, deram falta do menino de dois anos Antônio Carlos Vieira Junior, filho do casal Antônio Carlos e Sandra e conhecido como Juninho. Foi feita uma busca intensa na fazenda mas não encontraram a criança em lugar algum. Registraram o desaparecimento na delegacia local. Os raptores tinham sido os empregados da fazenda Maria da Conceição e Valdir de Souza. A criança ficara presa durante três dias no paiol enquanto Moacir Valente se preparava para realizar o ritual do sacrifício. No dia do crime, a criança foi levada até uma figueira no Santé, uma espécie de altar da seita na fazenda. Com um canivete Valdir seccionou a carótida de Juninho deixando jorrar todo o sangue em uma tigela. Moacir Valente bebeu o sangue da criança exigido pela entidade Exu Tranca-Rua das Almas. Os demais participantes também sorveram o sangue. O corpo a seguir foi esquartejado e colocado em um saco plástico.

Valdir e Maria da Conceição. Acervo O Globo
Valdir e Maria da Conceição. (Acervo O Globo)

O corpo de Juninho foi localizado no dia 10 do mesmo mês em um matagal próximo a uma cachoeira da Fazenda Bom Vale. O delegado do caso Renato Godinho iniciou a investigação com o depoimento dos principais empregados da propriedade Maria da Conceição e Valdir de Souza, que jogaram toda a culpa em outro empregado de nome Anésio Ferreira Arnezino, o Fiote. Pressionados, confessaram também a participação de Moacir Valente como mandante do crime. O delegado prendeu Fiote e intimou o fazendeiro a comparecer na delegacia. Amigo de Moacir Valente, o coronel reformado do Exército Luiz Salgado Góes intermediou junto ao delegado a sua apresentação. Ressaltou que desejava ajudar as autoridades no que fosse possível e jamais influenciaria ou atrapalharia as investigações. O ano de 1979 era um momento de transição do governo militar para o civil. Por isto tinha muito peso a interveniência de um coronel do Exército. No dia 17 de outubro, Moacir Valente se apresentou ao delegado Renato Godinho acompanhado do amigo coronel Góes. Já se encontravam detidos na delegacia Fiote, Maria da Conceição e Valdir de Souza.

Antônio Carlos e Sandra, pais de Juninho. Acervo O Globo
Antônio Carlos e Sandra, pais de Juninho. (Acervo O Globo)

A população de Cantagalo sabedora de que todos os envolvidos na morte de Juninho estavam prestando depoimento começou a se concentrar nos arredores da 105° Delegacia Policial, chegando a 2 mil pessoas até o final da noite. Começam os boatos. Um deles era de que Moacir Valente tinha cerca de Cr$ 500 mil cruzeiros no bolso para subornar a polícia e libertar a si e aos seus encarregados. Este valor variou nos órgãos de imprensa que relatou ter sido Cr$ 100 mil cruzeiros. Possivelmente a população vendo que se tratava de um acusado com boa situação financeira e acompanhado por um coronel do Exército temia que isto pudesse influenciar nas investigações. Tudo leva a crer que a população temia a impunidade de Moacir Valente. Começaram as pressões por parte dos cantagalenses. Um caminhão carregado de pedras estacionou em frente à delegacia e os populares jogavam pedras no prédio. O movimento tinha a participação dos caminhoneiros amigos do pai de Juninho, que também era carreteiro. A multidão enfurecida cercou a delegacia e exigia que lhes fossem entregues os quatro suspeitos da morte de Juninho. Ouviam-se gritos de “vamos pegá-los e linchá-los” e “Queremos Moacir”.  O delegado Renato Godinho dialogou com a população revoltada mas a sua tentativa de pacificar os ânimos foi infrutífera. Os policiais militares para amedrontar os revoltosos deram rajadas de metralhadora para o alto, mas o delegado determinou que baixassem as armas. Dentro da delegacia o coronel Góes tentou tirar Moacir Valente pedindo ajuda aos policiais militares que se negaram a ajudá-lo, disse o coronel depois em depoimento. Quando pressentiu que a invasão e o linchamento eram iminentes, no desespero, o coronel Góes chegou a pedir uma peruca e um vestido para tirar Moacir ou então vesti-lo com uma farda da Polícia Militar.

Coronel Luiz Salgado Góes. Acervo BN
Coronel Luiz Salgado Góes. (Acervo BN)

À medida que as horas foram passando maior número de pessoas iam se aglomerando ao redor da delegacia, que como dito antes chegou a 2 mil. Em dado momento, de súbito, a população enfurecida invadiu o prédio da delegacia pondo em fuga quem pode se salvar. O coronel Góes escapou pela janela dos fundos. Os depoentes Maria da Conceição e Valdir de Souza também conseguiram fugir. O delegado, seus assistentes e os policiais militares eram impotentes para evitar o linchamento. Os números da imprensa variavam de três a oito policiais civis e sete a dez militares. Parece que os policiais deram novamente tiros para o ar. Como a fúria da turba aumentasse os policiais militares deixaram também o prédio da delegacia e os presos à sua própria sorte. Do lado de fora incendiaram cinco veículos da Polícia Civil e um camburão da Polícia Militar. As linhas telefônicas e de radioamadores foram bloqueadas pelos caminhoneiros para impedir reforço de uma tropa de choque de Nova Friburgo. Os caminhoneiros haviam também fechado a entrada da cidade com caminhões. Mas o comandante do destacamento da Polícia Militar de Cantagalo, sargento Damião Azevedo conseguiu pedir reforço a Friburgo.

O primeiro a ser pego pela turba e arrastado para a rua foi Fiote, agredido a pancadas pelos populares. Moacir Valente se refugiara no forro do teto da delegacia mas os populares conseguiram localizá-lo e igualmente o levaram para a rua, sendo também agredido com golpes de paus. Foices também foram usadas no linchamento. Os órgãos sexuais de ambos foram extirpados e colocados na rua em exposição. Os corpos de Moacir e Fiote foram a seguir jogados nos veículos incendiados e de acordo com a mídia ainda estavam vivos.

Anésio Ferreira, o Fiote. Acervo O Globo
Anésio Ferreira, o Fiote. (Acervo O Globo)

Os populares a seguir se dirigiram em caminhões para a Fazenda Bom Vale. O coronel Góes ao ouvir alguém gritar “agora vamos queimar a fazenda maldita” se lembrou da senhora Violeta Lima Caputo, irmã de Moacir Valente, que se encontrava na casa da fazenda. Ele correu até o hospital e pediu auxílio a um médico que o levou até a fazenda conseguindo retirar a senhora Caputo. A casa sede de fazenda foi completamente incendiada. Um alambique de cachaça, um curral, um automóvel e um trator foram também incendiados. Houve muitos exageros pela imprensa sobre este homicídio, mas um relato da revista O Cruzeiro vale a pena destacar. Foi reportado que havia na fazenda quadros de Djanira, Portinari, Di Cavalcanti e outros pintores famosos. Quando o Corpo de bombeiros de Nova Friburgo chegou a fazenda restavam apenas as plantações. A situação só foi controlada depois que um novo contingente da Polícia Militar de Nova Friburgo conseguiu entrar em Cantagalo, interditado pelos caminhoneiros. Comandados pelo capitão Bismarck, 40 policiais militares esvaziaram o centro da cidade nas proximidades da delegacia. Moacir Valente foi sepultado ao lado da mãe no cemitério municipal de Santa Maria Madalena sob forte proteção policial. Populares cercaram o cemitério ameaçando destruir o seu túmulo. Durante muito tempo o cemitério deste município ficou fechado para evitar a profanação do túmulo de Moacir Valente, abrindo somente para sepultamentos.

Imagem do linchamento. (Acervo BN)
Imagem do linchamento. (Acervo BN)

Durante muitos meses após o episódio do homicídio e do linchamento, uma romaria de curiosos se dirigia até a Fazenda Bom Vale em razão da repercussão do caso. O juiz Custódio Augusto de Rezende decretou a prisão preventiva de Maria da Conceição Pereira e de Valdir de Souza que foram levados para a Polinter em Niterói. Segundo o delegado havia a suspeita de que outras crianças poderiam ter sido assassinadas em rituais de magia negra. Porém, realizando uma escavação em terra remexida onde se suspeitava haver um cadáver, o delegado apenas achou esterco de boi coberto com serragem para adubagem da terra. Segundo investigações do delegado, Fiote era inocente e quem na realidade matou a criança foi Valdir de Souza. O próprio pai de Juninho inocentou Fiote em entrevista a um jornal. O pai-de-santo Ajuricaba Coutinho da Paz, foragido, foi preso no Rio de Janeiro por policiais da 29° DP. Ele declarou que se escondia com medo de ser levado para Cantagalo e ter o mesmo destino de Moacir Valente e de Fiote. Afirmou que na fazenda ele imolava apenas cabritos, galinhas e coelhos.

Como o clima ainda era tenso, o depoimento de Valdir e de Maria da Conceição ao juiz de direito de Cantagalo teve a proteção de 300 policiais dos municípios de Nova Friburgo, Itaperuna e Rio de Janeiro. Ambos os indiciados e o coronel Góes estavam jurados de morte em Cantagalo, de acordo com a imprensa. Nesta ocasião o casal estava na Divisão da Polícia Política e Social, o DPPS, no Rio de Janeiro. Segundo policiais de plantão na DPPS que pediram para não serem identificados, ironizaram dizendo que não seria preciso nenhum método especial de interrogatório de Valdir e de Maria da Conceição, “basta dizer aos dois que se não falarem a verdade nós os mandaremos de volta a Cantagalo para serem entregues à multidão”.

Cantagalo na mídia. Acervo BN
Cantagalo na mídia. (Acervo BN)

Mão de Luva valendo-se da madinga de uma bolsa se metia em todos os perigos seguro de que nada o ofenderia. Esta bolsa mágica também lhe indicava o melhor caminho a seguir. No livro “Memórias de um Sargento de Milícias“, na época de D. João VI, lá pelas bandas da Cidade Nova havia um caboclo velho que tinha por ofício dar “fortuna”. E não era somente a gente do povo que dava crédito às feitiçarias; muitas pessoas da alta sociedade iam às vezes comprar venturas e felicidades pelo cômodo preço da prática de superstições. Neste livro o personagem Leonardo querendo resgatar o amor de uma bela cigana entregou-se de corpo e alma ao caboclo. Sujeitou-se nu a uma infinidade de provas como fumigações de ervas, tragou beberagens e citou orações misteriosas. Da África não importamos apenas os braços escravizados, mas também a religião de Nações africanas que deitou raízes fortes no Brasil. Faz parte de cotidiano do brasileiro o sincretismo religioso. No entanto, infelizmente, existem indivíduos que deturpam os rituais religiosos africanos como vimos neste triste episódio que ocorreu em Cantagalo.

FONTES: O Fluminense, 18 e 21de outubro de 1979; Jornal do Brasil, 18, 19, 20,21 e 22 de outubro de 1979; Revista Movimento, de 29/10 a 04/11/79; O Cruzeiro edição 0007; “Memórias de um Sargento de Milícias” de Manuel Antônio de Almeida.


Janaína Botelho – Serra News

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